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Obras da Patrística

São Gregório Magno, músico

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Do Conde Loppeux de la Villanueva

Século V. O império romano está em ruínas. O caos administrativo, militar e político do império é sentido por toda sociedade européia. Os bárbaros invadem as fronteiras imperiais e as cidades se esvaziam, já que são vulneráveis aos saques, e a anarquia toma conta do continente. Os únicos resquícios do antigo império sobrevivem em Bizâncio e no legado da Igreja Católica. Os antigos poderes administrativos de Roma recaem, no ocidente, na figura dos bispados, que salvam a cidade antiga do marasmo. Por outro lado, a Igreja, na expectativa dos novos habitantes dos territórios

imperiais, vê na figura dos bárbaros, a conquista de novas almas para a Cristandade.

O pragmatismo da Igreja é sentido em todo o caos: famílias romanas ligadas à instituição começam a forjar uma nova realidade social, a partir do caos. Todavia, a audácia da Igreja Romana seria recriar todo um império dentro dos ideais da sociedade cristã total. Eis que surgem os novos evangelistas, monges pregadores, vindos da Itália e até da Irlanda recém-convertida, que mostram as Boas Novas do Evangelho aos bárbaros e os convertem ao cristianismo. São construídos vários mosteiros na Europa, como sinônimo de resguardo cultural e religioso.

A idéia do monasticismo europeu não é moderna. Ela veio do Oriente, em particular, do Egito, e em algumas outras regiões da Palestina e da Grécia. Há fortes raízes judaicas na contemplação monástica, na figura dos essênios, seita do judaísmo isolada nos grotões das montanhas de Israel, no século I, A.D. No Egito cristianizado, na cidade de Alexandria, são conhecidas as manifestações monásticas e penitenciais , por vezes severas e exageradas, de eremitas e ascetas que se isolavam no deserto, em meditação.

No século VI, um grande monge chamado Bento de Núrsia, conhecido posteriormente como São Bento, soube organizar a situação dos mosteiros e da vida monástica. Ele criou as primeiras regras monásticas da Igreja, evitando os excessos na manifestação da devoção religiosa, ao mesmo tempo em que conciliava uma disciplina nos estudos e nas orações. Ficou conhecida como Regula Benedicti e foi adotada por uma boa parte dos monges medievais. De fato, as regras de Bento acabaram por fundamentar a Ordem dos Beneditinos.

Mas os mosteiros não foram apenas centros de contemplação religiosa. Em específico, as ordens monásticas preservaram uma boa parte da cultural clássica e medieval. Os beneditinos eram homens dedicados à cultura e a leitura e muitos eram obcecados por textos clássicos, relíquias do mundo antigo. Chamados de monges copistas, eles preservaram este legado, através de cópias de manuscritos, que eram reescritos de épocas e épocas, até chegarem às gerações posteriores. Dizem que estes homens escreviam sem parar, e passaram horas e mais horas, até completar o conteúdo das obras. Os copistas nutriam a crença de que quanto mais cópias fossem feitas, mais chances haviam das obras serem salvas. E essa lógica deu certo porque salvou muitas obras latinas e gregas do desaparecimento.

Isso já seria muito, se não fosse por outro detalhe: os mosteiros revolucionaram a economia e os costumes medievais. Os mosteiros foram a primeira empresa moderna, no amplo sentido da palavra, a ponto de renegar o escravismo e a servidão. Nos séculos VI a IX, as técnicas de produção agrícola, a capacidade administrativa e a aplicação de métodos contábeis das terras dos monges medievais eram superiores a qualquer empreitada agrícola feudal leiga. Ademais, a Igreja foi uma das pouquíssimas instituições medievais que usavam largamente o trabalho livre e assalariado em suas posses, desestimulando a escravidão. Muitas das terras da Igreja eram arrendadas aos camponeses, que poderiam produzir excedentes, ao mesmo tempo em que eles pagavam uma parte aos mosteiros. Ou mesmo os monges faziam o serviço voluntariamente, vivendo do usufruto de suas rendas, plantadas aos solos doados pela comunidade.

Ao contrário do mito alardeado sobre o poder da Igreja, grande parte das terras doadas para os monges eram insalubres e impróprias ao cultivo. No entanto, eles desenvolveram tecnologias de plantio de alimentos em pântanos e lugares íngremes, gerando grande produção de alimentos e enriquecendo os mosteiros. Uma parte desse excedente era consumido ou vendido, e outra parte era distribuído aos pobres.

A tradição da caridade da Igreja não era da Idade Média. Já existia desde a época do judaísmo da diáspora e foi incorporado às comunidades da Igreja Primitiva, até se tornarem parte da Igreja Católica e do mundo medieval. Na verdade, a Igreja foi a principal instituição de caridade em uma boa parte da história européia.

Se os bispados são meios eficientes de administração pública das cidades, que agora estão decadentes, a conversão dos pagãos ao cristianismo lhes dá uma legitimidade moral para o governo. Pequenos reinos nascem na Europa. Na mais completa tradição judaica adaptada ao cristianismo, os reis, cavaleiros e nobres são ungidos pela Igreja. Daí surge a nobreza cristã medieval e seus deveres políticos para com sua casta e seus direitos de conquista. O bispado romano, que perdeu seu status político, com a queda do Império no Ocidente e, sujeito às pressões do Império de Constantinopla, assim, teve sua possibilidade de reivindicar mais uma vez, autonomia e soberania espiritual.

Teoricamente, a Igreja Romana tinha hierarquização superior ao Império de Bizâncio, por herdar o legado da antiga capital imperial, embora as influências políticas do imperador neutralizassem essa influência. Vários papas gregos foram eleitos sob a indicação do imperador e a influência grega era sentida na Itália, apesar dos ressentimentos latinos. Se o poder espiritual da Igreja estava em Roma, sua força política estava em Bizâncio. O imperador, incorporando a tese bíblica de Melquisedec, ou do sacerdote-rei, conflitava com os poderes da Igreja e do papa. No entanto, as relações entre o imperador e o papa eram precaríssimas. Os papas latinos pagavam tributos a Bizâncio, desde o século V e então começaram a conspirar contra o poder do imperador. Durante o século VI, guerras bizantinas assolaram a Itália, e a independência da Igreja Romana foi salva pelos povos bárbaros conversos, em particular, os lombardos, que lutaram a favor do papa, contra o imperador Justiniano. Quase dois séculos depois, a Igreja Romana busca a proteção do reino franco, ao coroar Carlos Magno como imperador do Sacro Romano do Ocidente, chocando os bizantinos, que se consideravam reais herdeiros da tradição romana. De fato, os cristãos de Bizâncio se autodenominavam Romioi, ou gregos com cidadania romana. E qualquer menção que os distinguissem dos romanos, soaria como ofensa.

Os católicos romanos exigiam a sujeição da Igreja e do Império Grego à autoridade do papa. Os conflitos entre Roma e Bizâncio e entre a Igreja Romana e sua filial grega, tanto em aspectos litúrgicos, teológicos e políticos, acabaram por causar a primeira ruptura da Cristandade na Europa, com o cisma de 1054, em que a Igreja Grega se desligou da Igreja Romana.

A Igreja Romana, de fato, conquistou sua supremacia política, com predomínio sobre a sociedade ocidental, quando coroou Carlos Magno, no Natal de 800. A idéia mesma de ungir um príncipe romano-germânico implicava a legitimidade do império, sob os auspícios e bênçãos de Roma. A tradição intelectual medieval acabou por desenvolver uma das teorias mais engenhosas da política: o fundamento do poder espiritual e do poder temporal, que coexistiam e se equilibravam mutuamente, com preponderância do papado. O poder espiritual era o elemento orientador da política leiga e as ações dos príncipes só teriam legitimidade política, dentro da idéia de seguir a moralidade e o pensamento cristão. A Igreja fazia o equilíbrio de poderes nos papas e reis da Europa. A fé religiosa era um elemento comum de uma sociedade criada nos ideais do cristianismo. Isso ordenou, ainda com certa fragilidade e eficiência, o equilíbrio político do mundo europeu medieval, dividido entre vários feudos, reinos e principados que lutavam entre si.

Dentro deste contexto, é aclamado em Roma, como papa, no ano de 590, Gregório I, ou São Gregório Magno. Nascido em 540, era filho de uma velha família aristocrática senatorial romana, e, antes de ser Sumo Pontífice, fazia votos de monge beneditino. Gregório, um homem rico, legou toda a herança de sua família na construção de novos mosteiros e distribuiu uma parte de seus bens aos pobres. Ele patrocinou as primeiras ações missionárias na Inglaterra, sob a liderança de Agostinho da Cantuária, que converteu o povo inglês ao cristianismo e se tornou, posteriormente, o primeiro bispo da Cantuária. O papa era um homem culto e de letras, e uma de suas obras mais famosas é a biografia de seu mentor espiritual, São Bento de Núrsia. Por outro lado, o nome de Gregório ficou associado a uma das maiores contribuições de seu papado: a música!

O Canto Gregoriano é uma dos monumentos mais significativos da música ocidental. Foi compilado por ordem do papa, no ano 600 e é uma coletânea de músicas advindas da mais genuína tradição cristã. É o repertorio musical mais antigo que se há notícia no ocidente. Sua influência é tão abissal, tão profunda na música religiosa, que é sentida em milênios de música sacra cristã até os dias de hoje. Os cantos medievais, renascentistas e barrocos posteriores, as liturgias, os cânones, os responsórios, as antífonas, são estruturas ligadas aos esquemas musicais do Canto Gregoriano. Seu plano musical está intrinsecamente ligada aos rituais da missa católica.

Na verdade, os cantos gregorianos são o liame entre a música da Idade Antiga e o mundo medieval. Neles, há traços da liturgia judaica, grega e latina nos cantos e nas letras. Há ainda uma síntese de uma velha tradição oral da música cristã do mundo antigo, compilada em suas melodias homofônicas, com os recitativos judaicos dos salmos, em grego e latim. Concomitante a isso, o cantochão é uma sólida tradição encontrada nas sinagogas e mesmo na antiguidade clássica pagã latina, que foram incorporadas ao catolicismo.

O canto gregoriano acompanha os ritos da liturgia católica. Tal estruturação é encontrada em variadas épocas da música ocidental, desde Josquin de Prèz, até Mozart. É o legado do grande papa Gregório.

Eis aqui uma exemplificação do assunto, que extraio de um site, o que seria redundante repetir por minhas palavras:

“O Próprio é usado para temas de variados assuntos relacionados à igreja:

As peças principais do Próprio são:

o intróito

o aleluia

o canto do ofertório

o canto da comunhão

O intróito. O intróito acompanha a procissão de entrada do celebrante e de seus ministros, procurando ajudar aos fiéis a entrar no mistério celebrado, dando o tema do dia ou da festa.

O gradual. O gradual é o canto das leituras. É um tipo de salmo com estribilho. A princípio, a assembléia respondia com uma fórmula singela ao canto do solista que cantava os versículos sucessivos do salmo, mas durante os séculos V e VI, ao enriquecer a ornamentação, o texto se abreviou.

O aleluia. “Louvai ao Senhor”, é a tradução literal desta palavra hebraica. Na missa se cantava originalmente só no dia de Páscoa; e durante o Tempo de Páscoa. Logo se começou a cantar também nos domingos, celebrações semanais do mistério da Ressurreição. Finalmente, se estendeu o uso até aos dias de semana, fora o da quaresma.

O ofertório. Não se trata de um canto “funcional” senão de um acompanhamento das cerimônias, um tipo de oferenda musical suntuosa.

A comunhão. A função deste canto é acompanhar a procissão dos que vão comungar. O tema do canto da comunhão está quase sempre relacionado com o sacramento que se distribui nesse momento. Trata de sintetizar a liturgia da Palavra e a liturgia Eucarística.

Ao lado dos cantos do Próprio com textos que variam segundo as circunstâncias, a celebração da Missa comporta cantos com um texto fixo, independentemente do dia ou da festa.

O Kyrie. Kyrie eleison (Senhor, tende piedade) é uma fórmula grega com o qual os fiéis clamam a seu Senhor implorando sua misericórdia. Este canto, hoje em dia entoado no começo da Missa como rito penitencial, prepara os fiéis para a celebração do mistério eucarístico.

O Glória. Hino de origem oriental, o Glória remonta ao século II. Na liturgia romana, foi no início o canto de entrada da Missa de Natal, posto que convém perfeitamente pela inspiração original da base do texto. Progressivamente foi utilizado nas grandes festas do ano e nos domingos.

O Sanctus. No início da súplica eucarística, o canto do Sanctus introduz ao grande recitativo do Prefacio. Chama-se “o hino dos Serafins” que viu no templo de Jerusalém o profeta Isaías. Convida a Igreja da terra a unir-se a liturgia do céu.

O Agnus Dei. É o canto que acompanha a fração do Pão que acaba de ser consagrado, cuja fração acontece alguns momentos antes da distribuição da comunhão aos fiéis. Assim os assistentes se aproveitam do momento que há entre a consagração e a comunhão “para saudar com homenagem e súplica humilde a Ele que se fez presente para nós sob a aparência do pão”.

O OFICIO DIVINO


Esta grande súplica cotidiana da Igreja consagra o conjunto do tempo humano para o louvor divino. Sete vezes ao dia e uma vez durante a noite, a comunidade cristã se une para celebrar esta liturgia que no fundo está constituída essencialmente pelo canto dos salmos.

As antífonas. O canto do salmo está quase sempre envolto em uma peça breve chamado “antífona”. Que, todavia se apresenta por seu valor próprio, introduz e conclui o canto.

Os responsórios. Os responsórios são os cantos que respondem as leituras da Bíblia e dos padres durante o ofício da noite. É antes de tudo um canto de meditação, um comentário contemplativo do texto sagrado.

Os hinos. As peças mais populares do oficio são sem dúvida, os hinos. Sua importância na liturgia ocidental foi introduzida pelo Concílio Vaticano II. O hino dá o tom e ajuda os fiéis a entrar no tempo litúrgico ou no mistério celebrado. Considerado como uma composição sensível e melodiosa.”

(Canto Gregoriano – São Gregório Magno – Século VI A. D.)

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Grandes Heresias dos Primeiros Séculos

De Gercione Lima

Desde o princípio da Cristandade, a Igreja sempre se confrontou e combateu os falsos ensinamentos ou heresias.

Hoje em dia basta darmos uma olhada no catálogo telefônico para encontrarmos em qualquer cidade do mundo, uma denominação religiosa que nos diga exatamente aquilo que queremos ouvir. Algumas ensinam que Jesus não é Deus, ou que Ele é a única pessoa da Trindade, ou que existem muitos deuses (três dos quais são o Pai, o Filho e o Espírito Santo) ou que nós podemos nos tornar “deuses”, ou que uma pessoa uma vez salva, jamais poderá perder sua salvação, ou que não existe inferno, ou que o homossexualismo é apenas mais uma expressão da sexualidade humana, portanto um estilo de vida aceitável para um cristão, ou qualquer outro tipo de ensinamento.

A Bíblia nos advertiu que isso ocorreria. O Apóstolo Paulo avisou ao seu aluno Timóteo: “Porque virá o tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina da salvação. Levados pelas suas próprias paixões e pelo prurido de escutar novidades, ajustarão mestres para si. Apartarão os ouvidos da verdade e se atirarão às fábulas”.(2Tim. 4,3-4).

O QUE É HERESIA?

Antes de darmos uma olhada nas grandes heresias da história da Igreja, cumpre-nos dar algumas palavras sobre a natureza da heresia. Isso é muito importante já que o termo em si carrega um forte peso emocional e frequentemente é mal utilizado. Heresia não significa o mesmo que incredulidade, cisma, apostasia ou qualquer outro pecado contra a fé. O Catecismo da Igreja Católica define a heresia do seguinte modo:

“Incredulidade é negligenciar uma verdade revelada ou a voluntária recusa em dar assentimento de fé a uma verdade revelada. Heresia é a negação após o batismo de algumas verdades que devem ser acreditadas com fé divina e Católica, ou igualmente uma obstinada dúvida com relação às mesmas; apostasia é o total repúdio da fé cristã; cisma é o ato de recusar-se a submeter-se ao Romano Pontífice ou à comunhão com os membros da Igreja sujeitos a ele” (CCC 2089).

Para ser culpado de heresia, uma pessoa deve estar obstinada (incorrigível) no erro. Uma pessoa que está aberta à correção ou que simplesmente não tem consciência de que o que ela está dizendo é contrário ao ensinamento da Igreja, não pode ser considerada como herética.

A dúvida ou negação envolvida na heresia deve ser pós-batismal. Para ser acusado de heresia, uma pessoa deve ser antes de tudo um batizado. Isso significa que aqueles movimentos que surgiram da divisão do Cristianismo ou que foram influenciados por ele, mas que não administram o batismo ou que não batizam validamente, não podem ser considerados heresias mas apenas religiões separadas (exemplos incluem Muçulmanos que não possuem batismos e Testemunhas de Jeová que não batizam validamente).

E, finalmente, a dúvida ou negação envolvidos na heresia devem estar relacionados a uma matéria que deve ser crida com “fé Católica e divina” – em outras palavras, alguma coisa que tenha sido definida solenemente pela Igreja como verdade divinamente revelada (por exemplo, a Santíssima Trindade, a Encarnação, a Presença Real de Cristo na Eucaristia, o Sacrifício da Missa, a Infalibilidade Papal, a Imaculada Conceição e Assunção de Nossa Senhora).

É especialmente importante saber distinguir heresia de cisma e apostasia. No cisma, uma pessoa ou grupo se separa da Igreja Católica sem repudiar nenhuma doutrina definida. Já na apostasia, uma pessoa repudia totalmente a fé cristã e não mais se considera cristã.

Esclarecidas as diferenças, vamos dar uma conferida nas maiores heresias da história da Igreja e quando elas começaram:

Os Judaizantes (Séc. I)

A heresia Judaizante pode ser resumida pelas seguintes palavras dos Atos dos Apóstolos 15,1: “Alguns homens, descendo da Judéia, puseram-se a ensinar aos irmãos o seguinte: ‘Se não vos circuncidais segundo o rito de Moisés, não podeis ser salvos'”.

Muitos dos primeiros Cristãos eram Judeus, e esses trouxeram para a Fé cristã muitas de suas práticas e observâncias judaicas. Eles reconheciam em Jesus Cristo o Messias anunciado pelos profetas e o cumprimento do Antigo Testamento, mas uma vez que a circuncisão era obrigatória no Antigo Testamento para a participação na Aliança com Deus, muitos pensavam que ela era também necessária para a participação na Nova Aliança que Cristo veio inaugurar. Portanto eles acreditavam que era necessário ser circuncidado e guardar os preceitos mosaicos para se tornar um verdadeiro cristão. Em outras palavras, uma pessoa deveria se tornar judeu para poder se tornar cristão.

Gnosticismo (Sécs. I e II)

“A matéria é má!” – Esse é o lema dos Gnósticos. Essa foi uma idéia que eles “tomaram emprestado” de alguns filósofos gregos e isso vai contra o ensinamento Católico, não apenas porque contradiz Gênesis 1,31: “Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom”, bem como outras partes da Sagrada Escritura, mas porque nega a própria Encarnação. Se a matéria é má, então Jesus não poderia ser verdadeiro Deus e verdadeiro homem, pois em Cristo não existe nada que seja mau. Assim muitos gnósticos negavam a Encarnação alegando que Cristo apenas “parecia” como homem, mas essa sua humanidade era apenas ilusória.

Alguns Gnósticos, reconhecendo que o Antigo Testamento ensina que Deus criou a matéria, alegavam que o Deus dos Judeus era uma divindade maligna bem diferente do Deus de Jesus Cristo, do Novo Testamento. Eles também propunham a crença em muitos seres divinos, conhecidos como “aeons” que servem de mediadores entre o homem e um inatingível Deus. O mais baixo de todos esses “aeons” que estava em contato direto com os homens teria sido Jesus Cristo.

Montanismo (final do Séc. II)

Montanus iniciou inocentemente sua carreira pregando um retorno à penitência e ao fervor. Todavia ele alegava que seus ensinamentos estavam acima dos ensinamentos da Igreja porque ele era diretamente inspirado pelo Espírito Santo. Logo, logo ele começou a ensinar sobre uma eminente volta de Cristo em sua cidade natal na Frígia. Seu movimento enfatizava sobretudo a continuidade dos dons extraordinários como falar em línguas e profecias.

Sabelianismo (Princípio do Séc. III)

Os Sabelianistas ensinavam que Jesus Cristo e Deus Pai não eram pessoas distintas, mas simplesmente dois aspectos ou operações de uma única pessoa. De acordo com eles, as três pessoas da Trindade existem apenas em referência ao relacionamento de Deus com o homem, mas não como uma realidade objetiva.

Arianismo (Séc. IV)

Uma das maiores heresias que a Igreja teve que confrontar foi o Arianismo. Arius ensinava que Cristo não era Deus e sim uma criatura feita por Deus. Ao disfarçar sua heresia usando uma terminologia ortodoxa ou semi-ortodoxa, ele foi capaz de semear grande confusão na Igreja, conquistando o apoio de muitos Bispos e a rejeição de alguns. O Arianismo foi solenemente condenado no ano 325 pelo Primeiro Concílio de Nicéia, o qual definiu a divindade de Cristo e no ano 381 pelo Primeiro Concílio de Constantinopla, o qual definiu a divindade do Espírito Santo. Esses dois Concílios deram origem ao Credo Niceno que os Católicos recitam nas Missas Dominicais.

Pelagianismo (Séc. V)

Pelagius, um monge gaulês deu início a essa heresia que carrega seu nome. Ele negava que nós herdamos o pecado de Adão e alegava que nos tornamos pessoalmente pecadores apenas porque nascemos em solidariedade com uma comunidade pecadora a qual nos dá maus exemplos. Da mesma forma, ele negava que herdamos a santidade ou justiça como resultado da morte de Cristo na cruz e dizia que nos tornamos pessoalmente justos através da instrução e imitação da comunidade cristã, seguindo o exemplo de Cristo.

Pelagius declarava que o homem nasce moralmente neutro e pode chegar ao céu por seus próprios esforços. De acordo com ele, a graça de Deus não é verdadeiramente necessária, mas apenas facilita uma difícil tarefa.

Nestorianismo (Séc. V)

Essa heresia sobre a pessoa de Cristo foi iniciada por Nestorius, bispo de Constantinopla que negava a Maria o título de Theotokos (literalmente “Mãe de Deus”). Nestorius alegava que Maria deu origem apenas à pessoa humana de Cristo em seu útero e chegou a propor como alternativa o título Christotokos (“Mãe de Cristo”).

Os teólogos Católicos ortodoxos imediatamente reconheceram que a teoria de Nestorius dividia Cristo em duas pessoas distintas (uma humana e outra divina, unidos por uma espécie de “elo perdido”), sendo que apenas uma estava no útero de Maria. A Igreja reagiu no ano 431 com o Concílio de Éfeso, definindo que Maria realmente é Mãe de Deus, não no sentido de que ela seja anterior a Deus ou seja a fonte de Deus, mas no sentido de que a Pessoa que ela carregou em seu útero era de fato o Deus Encarnado.

Monofisismo (Séc. V)

O Monofisismo originou-se como uma reação ao Nestorianismo. Os monofisistas (liderados por um homem chamado Eutyches) ficaram horrorizados pela implicação Nestoriana de que Cristo era duas pessoas com duas diferentes naturezas (divina e humana). Então eles partiram para o outro extremo alegando que Cristo era uma pessoa com uma só natureza (uma fusão de elementos divinos e humanos). Portanto eles passaram a ser reconhecidos como Monofisistas devido à sua alegação de que Cristo possuía apenas uma natureza (Grego: mono= um; physis= natureza).

Os teólogos Católicos ortodoxos imediatamente reconheceram que o Monofisismo era tão pernicioso quanto o Nestorianismo porque esse negava tanto a completa humanidade como a completa divindade de Cristo. Se Cristo não possuia a natureza humana em sua plenitude então Ele não poderia ser verdadeiramente homem e se Ele não possuía a natureza divina em plenitude, então Ele também não era verdadeiramente Deus.

Iconoclastas (Sécs. VII e VIII)

Essa heresia surgiu quando um grupo de pessoas conhecidos como iconoclastas (literalmente, destruidores de ícones) apareceu. Esses alegavam que era pecaminoso fazer estátuas ou pinturas de Cristo e dos Santos apesar de exemplos bíblicos que provam que Deus mandou que se fizesse estátuas religiosas (por exemplo, em Ex 25,18-20 e 1Cr 28,18-19), inclusive representações simbólicas de Cristo (Num 21,8-9 e Jo 3,14).

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Hino Akathistos

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O Hino Akathistos (que literalmente significa “ficando de pé” porque é cantado nessa posição) é o hino mariano mais famoso do Oriente cristão e possivelmente da Igreja inteira. Composto em grego, no final do século V, é de autor desconhecido. Sua paternidade foi atribuída a diversos personagens, mas não há nenhuma prova concludente e talvez seja melhor assim. Como diz um comentarista moderno, “é bom que o Hino seja anônimo. Assim ele é de todos, porque é da Igreja.” Efetivamente, desde o princípio do século VI a Igreja Bizantina o incluiu em sua liturgia como a mais alta expressão do culto à Santíssima Virgem e o canta em muitas ocasiões, de modo especialmente solene no sábado da quinta semana da Quaresma.

A estrutura métrica do texto original é de uma perfeição completa, difícil de verter para outras línguas. As vinte e quatro estrofes que o compõem (umas mais longas, outras mais breves, alternadamente) se distribuem por igual em duas partes: uma evangélica e uma dogmática. A primeira parte retrata a narração evangélica em uma série de quadros, que vão desde a Anunciação ao encontro de Maria com o ancião Simeão no Templo de Jerusalém. A segunda parte expõe os principais artigos de fé mariana da Igreja: perpétua virgindade, maternidade divina, mediação de graça desde o Céu.

O Hino Akathistos é comum a todos os cristãos de rito bizantino, sejam católicos ou ortodoxos. Constitui, pois, uma ponte importante e solene entre a Igreja do Oriente a a do Ocidente.

LOARTE

Hino Akathistos

O mais excelso dos anjos foi enviado do Céu para dizer ‘Ave’ à Mãe de Deus. Ao transmitir sua saudação incorpórea, vendo o Senhor fazendo-se homem nela, o anjo, extasiado, deste modo a aclamou:

Ave, por vós resplandecem os gozos,
Ave, por vós se dissolve a dor,
Ave, resgate do pranto de Eva,
Ave, saúde do Adão que caiu

Ave, sois o cimo sublime do intelecto humano,
Ave, sois o abismo insondável ao olhar de um anjo
Ave, levais Aquele que a tudo sustém
Ave, sois a sede do Trono Real

Ave, ó estrela que ao Astro precede,
Ave, morada do Deus que se encarna,
Ave, por vós se renova o criado,
Ave, por vós se faz menino o Senhor!

Ave, Virgem e Esposa!

Bem sabia Maria que era uma Virgem Santa, e por isso respondeu a Gabriel: “Vossa singular mensagem se afigura incompreensível a meu intelecto, pois anunciais um parto virginal em meu seio, exclamando: Aleluia!”

Aleluia, Aleluia, Aleluia!

Ansiava a Virgem compreender o mistério, e perguntava ao Mensageiro divino: “Poderá meu seio virginal dar à luz um filho? Dizei-me!” E aquele, reverente, a respondeu aclamando-a:

Ave, presságio de excelsos desígnios,
Ave, sois a prova de arcano mistério,
Ave, prodígio primeiro de Cristo
Ave, compêndio de toda a verdade.

Ave, ó Escada celeste em que desce o Eterno
Ave, ó Ponte que leva os homens ao Céu,
Ave, prodígio
cantado por coros celestes
Ave, ó açoite que afugenta a horda infernal.

Ave, portastes a Luz inefável
Ave, não contastes a ninguém o ‘modo’
Ave, transcendeis a Ciência dos sábios,
Ave, vós incendiais o coração fiel

Ave, Virgem e Esposa!

A Virtude do Altíssimo a cobriu com sua sombra e fez mãe à Virgem que não conhecia varão: aquele seio, feito fecundo desde o Alto, se converteu em campo ubérrimo para todos os que querem alcançar a Salvação, cantando desta maneira: Aleluia!

Aleluia, Aleluia, Aleluia!

Com o Senhor em seu seio, apressada, Maria subiu à montanha e conversou com Isabel. O pequeno João, no ventre de sua mãe, ouviu a saudação virginal e exultou; saltando de alegria, cantava à Mãe de Deus:

Ave, videira do mais Santo Broto,
Ave, ramo de um Fruto sem mancha
Ave, dais vida ao Autor da vida
Ave, cultivais o Vosso Agricultor.

Ave, sois o campo que mostra as mais ricas graças,
Ave, sois altar em que se oferecem os melhores dons,
Ave, um refúgio aos fiéis preparais,
Ave, um pasto agradável fazeis brotar.

Ave, sois o incenso agradável de súplicas
Ave, do mundo suave perdão,
Ave, clemência de Deus pelo homem,
Ave, confiança do homem em Deus.

Ave, Virgem e Esposa!

Com o coração turbado e pensamentos discordantes, o sábio José se agitava na dúvida; admirando-vos intacta, suspeita esponsais secretos, ó Imaculada! E quando soube que éreis Mãe por obra do Espírito Santo, exclamou: Aleluia!

Aleluia, Aleluia, Aleluia!

Os pastores ouviram os coros de anjos que cantavam a Cristo, descendo entre nós. Correndo para ver o Pastor, contemplaram-No como Cordeiro inocente, que se nutre ao seio da Virgem, e cantam assim:

Ave, sois a Mãe do Pastor-Cordeiro,
Ave, recinto do rebanho fiel,
Ave, defesa das feras malignas,
Ave, guardiã da Eternidade

Ave, por vós com a terra exultam os céus
Ave, por vós com os céus rejubila-se a terra,
Ave, sois perene voz dos Santos Apóstolos,
Ave, de Mártires fortes invicto valor.

Ave, potente sustento de Fé,
Ave, de graça esplêndido pendão,
Ave, por vós foi espoliado o Inferno,
Ave, por vós nos vestimos de honra.

Ave, Virgem e Esposa!

Observando a Estrela que guiava ao Eterno, os Magos seguiram seu fulgor. Foi luminária segura para ir em busca do Poderoso, o Senhor. E alcançando o Deus inalcançável, aclamaram-No felizes: Aleluia!

Aleluia, Aleluia, Aleluia!

Os Magos contemplaram em braços maternos Aquele que fez o homem. Sabendo que era o Senhor, ainda que sob a aparência de servo, carinhosamente ofereceram-No seus presentes, dizendo á Mãe bem-aventurada:

Ave, ó Mãe do Astro perene,
Ave, aurora do místico dia,
Ave, os fornos de erros apagais,
Ave, conduzis com vosso brilho a Deus.

Ave, ao odioso tirano afastastes do trono,
Ave, vós Cristo nos dais, clemente Senhor,
Ave, sois o resgate de ritos nefandos,
Ave, sois quem salva do opressor

Ave, destruístes o culto ao fogo,
Ave, extinguis a chama do vício,
Ave, ensinais a ciência ao crente,
Ave, alegria de todas as gentes

Ave, Virgem e Esposa!

Anunciando a Deus foram os Magos, no caminho de volta. Cumpriram Vosso vaticínio e Vos predicavam, ó Cristo, a todos, sem se preocupar com Herodes, o néscio, que era incapaz de cantar: Aleluia!

Aleluia, Aleluia, Aleluia!

Iluminando o Egito com o Esplendor da Verdade, Vós afastastes as trevas do erro, porque os ídolos de então, Senhor, debilitados pela força divina, caíram. E os homens, salvos, aclamaram à Mãe de Deus;

Ave, vós reergueis o gênero humano
Ave, derrota do reino infernal,
Ave, venceis mentiras e erros,
Ave, mostrais a grande falsidade.

Ave, sois o mar que devora o Faraó,
Ave, sois a rocha de que brota a Água da Vida,
Ave, coluna de fogo que guias à noite,
Ave, refúgio do mundo qual nuvem sem par

Ave, vós doais o maná celeste
Ave, ama dos santos júbilos,
Ave, vosso místico lar prometido,
Ave, de leite e de mel manancial.

Ave, Virgem e Esposa!

O velho e inspirado Simeão estava a ponto de deixar este mundo enganoso. Foste dado a ele como uma criancinha, mas em Vós ele reconheceu o perfeito Senhor; e, estupefato, admirando a divina Sabedoria, exclamou: Aleluia!

Aleluia, Aleluia, Aleluia!

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O Credo de Frei Betto

” Creio no Deus desaprisionado do Vaticano e de todas a religiões existentes e por existir. Deus que precede todos os batismos, pré-existe aos sacramentos e desborda de todas as doutrinas religiosas. Livre dos teólogos, derrama-se graciosamente no coração de todos, crentes e ateus, bons e maus, dos que se julgam salvos e dos que se crêem filhos da perdição, e dos que são indiferentes aos abismos misteriosos do pós-morte.

Creio no Deus que não tem religião, criador do Universo, doador da vida e da fé, presente em plenitude na natureza e nos seres humanos. Deus ourives em cada ínfimo elo das partículas elementares, da requintada arquitetura do cérebro humano ao sofisticado entrelaçamento do trio de quarks.

Creio no Deus que se faz sacramento em tudo que aproxima, atrai, enlaça, abraça e une – o amor. Todo amor é Deus e Deus é o real. Em se tratando de Deus, bem diz Rumî, não é o sedento que busca a água, é a água que busca o sedento. Basta manifestar sede e a água jorra.

Creio no Deus que se faz refração na história humana e resgata todas as vítimas de todo poder capaz de fazer o outro sofrer. Creio em teofanias permanentes e no espelho da alma que me faz ver um Outro que não sou eu. Creio no Deus que, como o calor do sol, sinto na pele, sem no entanto conseguir fitar ou agarrar o astro que me aquece.

Creio no Deus da fé de Jesus, Deus que se aninha no ventre vazio da mendiga e se deita na rede para descansar dos desmandos do mundo. Deus da Arca de Noé, dos cavalos de fogo de Elias, da baleia de Jonas. Deus que extrapola a nossa fé, discorda de nossos juízos e ri de nossas pretensões; enfada-se com nossos sermões moralistas e diverte-se quando o nosso destempero profere blasfêmias.

Creio no Deus que, na minha infância, plantou uma jabuticabeira em cada estrela e, na juventude, enciumou-se quando me viu beijar a primeira namorada. Deus festeiro e seresteiro, ele que criou a lua para enfeitar as noites de deleite e as auroras para emoldurar a sinfonia passarinha dos amanheceres.

Creio no Deus dos maníacos depressivos, das obsessões psicóticas, da esquizofrenia alucinada. Deus da arte que desnuda o real e faz a beleza resplandecer prenhe de densidade espiritual. Deus bailarino que, na ponta dos pés, entra em silêncio no palco do coração e, soada a música, arrebata-nos à saciedade.

Creio no Deus do estupor de Maria, da trilha laboral das formigas e do bocejo sideral dos buracos negros. Deus despojado, montado num jumento, sem pedra onde recostar a cabeça, aterrorizado pela própria fraqueza.

Creio no Deus que se esconde no avesso da razão atéia, observa o empenho dos cientistas em decifrar-lhe os jogos, encanta-se com a liturgia amorosa de corpos excretando sumos a embriagar espíritos.

Creio no Deus intangível ao ódio mais cruel, às diatribes explosivas, ao hediondo coração daqueles que se nutrem com a morte alheia. Misericordioso, Deus se agacha à nossa pequenez, suplica por um cafuné e pede colo, exausto frente à profusão de estultices humanas.

Creio sobretudo que Deus crê em mim, em cada um de nós, em todos os seres gerados pelo mistério abissal de três pessoas enlaçadas pelo amor e cuja suficiência desbordou nessa Criação sustentada, em todo o seu esplendor, pelo frágil fio de nosso ato de fé.”

Agora eu pergunto: pode haver alguma dúvida, qualquer dúvida, que a teologia da libertação é uma seita satânica?

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Santo Agostinho

Julián Marías


Santo Agostinho nasceu em 354 e morreu em 431; são três séculos que o separam daquele outro filósofo de quem já falamos outro dia, Sêneca. Porém não se trata só de distância temporal, mas também de um novo estilo completamente diferente. Em Santo Agostinho, encontraremos uma etapa nova da filosofia. Falamos até agora do pensamento grego, e acrescentamos alguma coisa que está em latim, mas dentro da área do pensamento helênico: Sêneca. E com isso termina uma grande etapa, a primeira etapa do pensamento filosófico, centrada no problema da mudança, do movimento, kinesis em grego, mutação, que faz com que as coisas sejam ou não sejam, cheguem a ser e deixem de ser, mudem de quantidade, de qualidade… Enfim, o problema da instabilidade do real. Como lembram, este era o grande problema, que se trata de superar mediante a noção de ser, de ente, ón, de Parmênides, em conflito com a outra grande idéia grega: a natureza, a physis, que é justamente mudança, variação. As coisas estão ameaçadas pela mudança, pela variação, e trata-se de buscar aquilo que verdadeiramente é, que é o que é, se possível, de modo permanente. Este é o grande problema central do pensamento antigo.

Mas agora vamos nos encontrar com uma situação radicalmente diferente. Santo Agostinho foi o primeiro grande filósofo cristão. É evidente que tinha havido preocupação filosófica entre os cristãos nos primeiros séculos, que é o que se chama Patrística, a obra dos Padres da Igreja, que era, antes de tudo, teológica, religiosa, mas sem dúvida com uma componente, com uma vertente filosófica. Mas o primeiro grande filósofo, o primeiro criador filosófico dentro do cristianismo, foi Santo Agostinho.

E assim sendo, a filosofia mudou totalmente, porque o problema agora já é outro, o cristianismo introduz algo muito mais radical do que a mudança, a variação, a kinesis helênica. O cristão pensa que o mundo foi criado, a idéia de criação é alheia ao pensamento grego. Os gregos, olharão a natureza, a physis, e vão procurar explicá-la, farão cosmogonias, para explicar a origem do mundo, mas a idéia de criação é alheia ao pensamento grego. Existe inclusive um caso particularmente elucidador que é o de Plotino, o grande pensador neoplatônico, que com certeza recebeu influências cristãs. Essa influência levou-o a pensar algo que tem certa analogia com a idéia de criação: é o que ele chamará de emanação. Chamará o princípio capital de Uno, mais ou menos o equivalente à divindade, produzindo todo o restante por emanação. Há muitas metáforas, há uma série de imagens, por exemplo, a de uma luz que vai iluminando, que vai se difundindo até que acaba na névoa. Há diferentes formas de entender isso, mas o fundamental é que a emanação é a produção de tudo o que não é o Uno a partir do Uno, que emana dele.

Este é o conceito de emanação, que não é criação. Já o cristianismo afirma a criação: no princípio Deus criou o céu e a terra, e criou-os do nada: não de si próprio, não é a emanação, não é a fabricação do mundo com uma matéria prima já existente; e sim que Deus põe em existência uma realidade nova, diferente d’Ele, por amor efusivo, esse é, digamos, o motivo da ação criadora de Deus, e evidentemente está ameaçado pelo nada, isto é, o problema está em que poderia não haver nada. Não é a mudança de uma coisa para outra, não é o problema da kinesis grega, mas algo bem mais radical: o real está ameaçado pelo nada, poderia não haver nada. E Deus pôs o mundo em existência.

Isso com certeza é um grau de radicalidade maior que o que se dá no pensamento grego, ou seja, o pensamento grego parte do pressuposto de que as coisas já estão aí. Uma pergunta crucial: por que há algo, e não somente o nada? É a formulação que Leibniz fará, e mais tarde Unamuno, e em terceiro lugar, Heidegger. Em geral, Unamuno é esquecido, mas ele diz isto e muito energicamente.

Primeiramente isso corresponde à atitude que se iniciou com o cristianismo, no qual o problema radical é justamente a realidade da criatura e do Criador. Não se esqueçam de que é problemático empregarmos – e durante toda a História se emprega – a palavra “ser” aplicada a Deus e à realidade criada – às coisas, aos homens, aos astros, a tudo o que encontramos. Porque ser criador é radicalmente diferente de ser criatura. Pode-se aplicar a palavra “ser” também a Deus, os senhores lembrem como dizia Aristóteles “o ser se diz de muitas maneiras” (depois concretiza em quatro maneiras), e há ainda o problema da analogia do ente: o ente se diz de muitas maneiras, mas todas têm uma referência comum, ele vai encontrar precisamente o fundamento da analogia na idéia de substância, da ousia. Ora, falamos do ser criatura, e do ser criador, do ser de Deus, a analogia – se é que há a analogia – é enorme, é de um grau de intensidade muito maior que a analogia que existe entre as diferentes formas do ser, digamos, criado (que para Aristóteles não é criado).

Como podem ver, estabelecem-se aqui problemas sumamente graves, problemas muito delicados. Pois bem, Agostinho foi o primeiro filósofo que assume o embasamento geral do cristianismo, que faz uma filosofia cristã (quando se fala de filosofia cristã, não quer dizer que a filosofia cristã esteja determinada, não há nenhuma filosofia que seja cristã nesse sentido, o que ocorre é que pode haver várias filosofias que sejam cristãs, pelo menos podendo ser conciliáveis com o cristianismo. Eu, quando se discutia sobre filosofia cristã, dizia sempre: filosofia cristã é a filosofia dos cristãos enquanto tais).

O cristão tem uma visão da realidade condicionada por sua condição de cristão, e assim, vê coisas que os outros não vêem, interessa-se por questões e problemas que os outros não se interessam. E naturalmente dessa situação, dessa instalação do cristianismo pode nascer precisamente uma filosofia, ou uma outra, ou uma terceira ainda. Há muitas filosofias feitas por cristãos como tais, que nascem da situação em que se encontram, da maneira de ver o real que o cristão tem. E são filosofias cristãs, e podem ser várias, e bem diferentes uma da outra, por que não?

O primeiro grande filósofo, o primeiro filósofo criativo que assume esses pressupostos, que partiu do cristianismo, foi Santo Agostinho. Mas as coisas não são assim tão simples, porque Santo Agostinho não começou sendo cristão. Nasceu no Norte da África, perto de Cartago. Seu pai era pagão, sua mãe era cristã, e depois foi canonizada: Santa Mônica. Santo Agostinho foi pagão durante muitos anos; teve um momento inclusive em que se aproximou das Escrituras, mas encontrou algo pouco interessante e superficial, e não se interessou, não se tornou cristão. O que tinha era uma adesão muito entusiasmada à doutrina de Manes, ao maniqueísmo. Manes foi uma figura primariamente religiosa, muito complexa, muito complicada. Viajou por diferentes lugares, teve uma vida muito agitada, recolheu elementos de muitas doutrinas, dentre elas o cristianismo. De certo modo poderia ter sido uma das muitas heresias do cristianismo que floresceram na época, mas teve sobretudo uma influência da religião de Zoroastro, da religião que se estabeleceu principalmente na Pérsia, e que era um dualismo, um dualismo energicamente afirmado entre o bem e o mal, a luz e as trevas, Deus e o diabo. Esta dualidade, para Manes, é insuperável. Isso dá, digamos, uma estrutura profundamente dramática à questão do real, o que emocionou Agostinho, Aurélio Agostinho, como se chamava.

E viveu uma fase bastante longa com essa convicção, digamos, muito dramática do real, com esta impressão conflitante da luta do bem e do mal; isto deixou uma marca que se fará notar em sua teologia, mais que em sua filosofia. Na teologia, a perspectiva desse caráter dramático não é alheia ao cristianismo; para o cristão, a vida humana tem uma desenlace, isto é, a possibilidade de salvação ou de condenação é uma verdade. O fato de que agora estejam tentando esquecer e liquidar isso é um erro absurdo. Mas, em última análise, o cristianismo naturalmente afirma a infinita superioridade de Deus; por conseguinte, em última instância, o bem é a realidade suprema, e será sempre triunfante. De modo que há evidentemente um caráter dramático, de maneira tal que o desenlace está aberto às duas possibilidades: de salvação ou de condenação. Como podem ver, a atração exercida por Manes é justificável, é compreensível.

Agostinho continuava – estava na Itália: em Roma, e depois em Milão – sem ainda ser cristão, mas seguia as orações e as homilias do bispo Santo Ambrósio, uma figura muito importante da Igreja naquela época. E Agostinho teve um momento de crise, foi quando ouviu uma voz, uma voz de criança que lhe disse: Tolle, lege, toma e lê. Então voltou às Escrituras, abriu o Novo Testamento, encontrou uma passagem, leu e isto lhe causou uma impressão muito profunda, e teve uma forte crise, e daí se aproximou do cristianismo. Mas ainda demorou algum tempo para ser plenamente cristão, quis se batizar, e mais tarde acabará sendo o bispo de Hipona e uma grande figura da Igreja. Viveu em um desses territórios romanizados, cristianizados, que depois foram cobertos pela grande onda islâmica e deixaram de ser cristãos e passaram a ser países de língua e de cultura árabe, de religião islâmica. Mas nesse mo- mento era a grande figura da Igreja do Norte da África, mais precisamente de Hipona.

Portanto, como os senhores podem ver, houve uma evolução, era um homem que tinha sido pagão, que viu o mundo com olhos pagãos, que viveu no império romano tardio, num momento de profunda crise: a pressão dos bárbaros já ameaçava a destruição de Roma. Viu o mundo com olhos pagãos, foi o último grande homem an- tigo. Mas ao mesmo tempo foi o primeiro grande pensador, o primeiro grande filósofo cristão, que anunciará uma nova era, uma nova época. O contexto histórico de Santo Agostinho é único, absolutamente extraordinária, e, junto com sua personalidade forte e apaixonada, reflete-se em seu pensamento. Era além do mais um escritor esplêndido, a obra de Santo Agostinho, muito copiosa, é extremamente importante.

Mas naturalmente o que nos interessa aqui é ver como ele viveu essa situação. Ele sente aquela atitude típica de convertido. Há um texto de Santo Agostinho muito expressivo: Sero te amavi, pulchritudo tam antiqua et tam nova – “tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova”. Ele tinha consciência de ter amado tarde a Deus, descobriu-o tarde, converteu-se sendo já um homem adulto. Ou seja, é uma atitude de um homem que está, repito, saindo de uma forma de vida, de uma época histórica, e entrando em outra. Essa atitude visceral de súplica é, em Santo Agostinho, fundamental. É ela que o faz descobrir, e é afinal a grande descoberta de Santo Agostinho: a intimidade (o homem grego mal conhecia a intimidade; é claro que houve o oráculo de Delfos, que disse gnothi s’auton “conhece-te a ti mesmo”, isso estará em Sócrates, e aparecerá também em Platão e em Aristóteles; sim, mas não era ainda… inclusive, os gregos raramente diziam eu; diziam nós).

A grande descoberta, a maior, de Santo Agostinho é a intimidade. E quando ele se questiona, diz: Deum et animam scire cupio – quero conhecer a Deus e à alma. Nihil aliud, nada mais, absolutamente nada mais. É uma sentença que um grego jamais poderia empregar. A alma é, em última análise, a grande descoberta de Agostinho, a alma entendida como intimidade. E fala justamente do espiritual. Espiritual não quer dizer não-material; há uma tendência muito freqüente de entender o espiritual como aquilo que não é material; e não é disso que se trata, mas de algo muito importante: espiritual é aquela realidade que é capaz de entrar em si mesma, o poder entrar em si mesmo é o que dá a condição de espiritual, não a não-materialidade. A insistência no imaterial ocultou o que é essencial, que é precisamente a capacidade de entrar em si mesmo.

Por isso Santo Agostinho dirá: não vá fora, entra em ti mesmo: no homem interior habita a verdade: Noli foras ire, in teipsum redi: in interiore homine habitat veritas. Essas palavras são de uma enorme relevância, são até de um extraordinário valor literário. É disso que se trata: do homem interior. A descoberta é a interioridade, a intimidade do homem. E é justamente Santo Agostinho quem vai perceber que quando o homem fica apenas nas coisas exteriores, esvazia-se de si mesmo. Quando entra em si mesmo, quando se recolhe a sua intimidade, quando penetra precisamente naquilo que é o homem interior, o mundo interior – naturalmente existe um mundo exterior também, mas o decisivo é o mundo interior –, é justamente aí que Deus se encontra. É aí que se pode encontrá-Lo, e não nas coisas, não imediata-mente nas coisas. Primariamente, por experiência, em algo que é justamente sua imagem. Para Santo Agostinho é preciso levar a sério que o homem é imago Dei, imagem de Deus. É evidente que para encontrar a Deus, o primeiro passo, e o mais adequado, será buscar sua imagem, que é o homem como intimidade, o homem interior.

Isso é o principal. E toda sua obra terá esse caráter. Um dos livros capitais é As confissões, que num certo sentido é o mais importante. Então, o que são essas Confissões? É um livro que não existe no mundo antigo, não há nada equivalente. Se os senhores quiserem algo que poderia ter uma remota semelhança, seriam as Meditações ou Reflexões, de Marco Aurélio. Mas não é um livro de intimidade, é um livro de recordações, um livro de gratidão, ele diz o que deve aos antepassados, aos professores… Essa entrada na intimidade, no mais profundo de si mesmo, em confissão – a palavra é confissão – é uma autobiografia. Esse é precisamente o pensamento de Santo Agostinho: consiste primariamente em mostrar, em descobrir sua própria intimidade. Ele exterioriza em seu livro, em uma manifestação oral, o homem interior, sua própria intimidade. Essa é a grande descoberta, que começa com ele, e naturalmente depois será uma aquisição da humanidade.

É interessante ver como a humanidade vai adquirindo coisas. Já vimos que adquirimos tantas coisas com os gregos. Com o Santo Agostinho a humanidade adquire o sentido da intimidade, o sentido do que é o homem interior, a possibilidade de entrar em si mesmo e aí buscar precisamente a Deus. Por isso ele tem fórmulas brilhantes, fórmulas de pensamento religioso e ao mesmo tempo filosófico. Como quando diz: credo ut intelligam, creio para entender. A fé, justamente para entender. Os senhores sabem que o cristianismo é uma religião teológica – outras religiões não são teológicas – o cristianismo é um conhecer a Deus: quem é, como é… Portanto, requer a compreensão. Um seguidor de Santo Agostinho, Santo Anselmo, fala da operosa fides e da otiosa fides: a fé que não procura entender é uma fé ociosa. A verdadeira fé é uma fé operante, viva, procura compreender. Credo ut intelligam, creio para entender; fides quaerens intelectum, a fé que procura a inteligência. Portanto, em Agostinho, a grande descoberta foi esta, de ver o mundo e ver a realidade na perspectiva da intimidade. Do ponto de vista portanto de quem eu sou: nec ego ipse capio totum, quod sum, nem eu mesmo compreendo tudo aquilo que sou. É uma realidade que não acaba de se manifestar, que é algo no qual sempre se pode aprofundar, que é preciso ir mais além, e por isso a forma de se descobrir é precisamente contá-lo, fazer uma autobiografia, uma confissão, pois é nela que aparecerão precisamente as visões da realidade, da realidade que se basicamente é dele, de Agostinho, é também, do homem em geral, e por meio dele dá acesso a Deus. A Deus dedicará outro livro fundamental, que num certo sentido é mais o importante: o De Trinitate, sobre a Trindade. E há um terceiro grande livro, o extraordinário De civitate Dei, que é o livro no qual levanta o problema da cidade de Deus e da cidade terrena: no momento da crise do Império Romano, ameaçado pelos bárbaros – por Alarico – que está em plena crise, e que é uma realidade deficiente do ponto de vista cristão, mas grandiosa, extraordinária…

O pensamento de Santo Agostinho tem uma visão de realidade inteiramente nova. Por isso falo de outro estilo de fazer filosofia, e de um profundo dramatismo. O pensamento de Santo Agostinho é profundamente comovente, porque, além do mais, possui um valor literário extraordinário: Agostinho foi um dos maiores escritores da língua latina.

Curiosamente, esse entrar em si mesmo, essa relação com a intimidade, o levará à superação do ceticismo. Lembrem que a Academia platônica perdeu seu vigor criador, metafísico, depois de Platão, mas continuava existindo e era uma escola de céticos: os acadêmicos. Ele escreveu um tratado contra os acadêmicos, contra os platonizantes, que não era o mesmo que platonismo. Pois bem, é curioso como ele se opõe justamente a esse ceticismo dominante na Academia, e é extremamente interessante que ele faça um apelo à evidência, e portanto, ao pensamento: eu penso; eu posso errar; posso me enganar; mas não posso duvidar de que existo, porque se me engano então existo, porque só existindo é que posso me enganar. Isto é, eu não posso duvidar precisamente porque é evidente minha realidade pensante.

Considerem que isso é exatamente – em termos muito parecidos, embora com outros pressupostos, com um alcance diferente – o que será o núcleo do pensamento de Descartes. Cogito, ergo sum, penso, logo existo. Sou uma res cogitans, sou uma coisa que pensa. E é curioso que foi precisamente com Descartes é que iniciará outra grande época do pensamento. Se dividirmos o pensamento filosófico em grandes épocas, teremos a grega, com sua prolongação romana (que não é original, depende do pensamento grego). Depois vem o pensamento cristão, que começa em forma plena com Santo Agostinho, e que irá durar até que aparece o pensamento moderno, o idealismo, a doutrina de Descartes. É curioso que justamente o grande momento inicial do cogito, a operação da evidência, alcançar o que é absolutamente evidente, um fundamento que não só não seja duvidoso, mas também indubitável, algo do qual não se possa duvidar, justamente porque está na própria evidência do pensamento: palavras muito parecidas às de Agostinho em De civitate Dei.

Outra coincidência curiosa: o livro fundacional da filosofia moderna é o Discurso do método, de Descartes, que é também uma autobiografia. É, mais ou menos, um livro autobiográfico, não é um tratado, não é uma exposição de tese, é um relato da própria vida de Descartes. Muito mais curto que as Confissões de Santo Agostinho, escrito em francês, e é justamente uma narração, uma exposição de sua própria vida, apoiando-se em um argumento, que é o cogito, que apareceu de forma diferente, com propósito diferente, mas com um apelo à evidência radical, como em Santo Agostinho.

Com isso se diz que a filosofia com a qual se inicia uma nova época, a grande época da filosofia moderna, está assentada, está condicionada pelo agostinismo em dois sentidos: na relação com a evidência do pensamento, por um lado, e o caráter autobiográfico, narrativo, porque expositivo da própria vida nas duas grandes obras: as Confissões e o Discurso do método. Vejam, isso é bem surpreendente.

Há ainda uma coisa muito importante: Santo Agostinho iniciou esse estilo de filosofar, que iniciou uma nova etapa condicionada pelo cristianismo como tal, e que terá uma vigência absolutamente espantosa. Santo Agostinho morreu em 430, e foi a grande figura que dominou todo o pensamento cristão, absolutamente todo, até mil e duzentos e tanto, até bem avançado o século XIII.

Durante oito séculos, Santo Agostinho foi a maior figura dominadora do pensamento cristão: todos recorrem a ele, todos o respeitam. Isso tem uma importância particular, porque, claro, temos esse conceito tão usado por Ortega, e também por mim, que é de vigência, que é o vigor. Têm vigência as coisas que devemos ter em conta. Se querem saber se uma determinada realidade de nossa época tem vigência ou não, é muito fácil fazer o teste: se é preciso contar com ela, então tem vigência. Se podemos ignorá-la, se podemos, por exemplo, não opinar sobre ela; então ela não tem vigência. Pois bem, se consideram o pensamento moderno, a literatura, as formas estilísticas, verão que têm um certo período de vigência. Se uma forma intelectual, ou artística, ou literária tem vigência de séculos, parece algo extraordinário. Santo Agostinho tem oito séculos de vigência; isso é absolutamente espantoso.

Na próxima conferência, vamos nos encontrar com São Tomás de Aquino, que questiona a vigência do agostinismo: embora de certo modo o use, e terá outra longa vigência, e também terá seus problemas e, naturalmente, teremos que analisá-los. Mas vejam como é realmente extraordinário, ter uma fecundidade quase inesgotável, o fato de que Santo Agostinho, com suas proposta nova, com esse novo estilo de pensar que inaugura, que nasceu precisamente de uma visão dupla: por um lado viu o mundo com olhos antigos, foi o grande último homem antigo, mas ao mesmo tempo foi o primeiro pensador que parte da situação criada pelo cristianismo, condicionada por ele, que vê portanto o mundo dessas duas maneiras. Participou da visão pagã, da tentação maniquéia, a que cedeu, evidentemente, com grande entusiasmo – em Santo Agostinho, tudo é especialmente forte – depois é, naturalmente, de um cristianismo essencial, apaixonado.

Essa idéia da intimidade, da personalidade, o levará a dar, por exemplo, um papel extraordinário ao amor, inclusive filosoficamente. Ele diz que se a sabedoria é Deus, ou se Deus é a sabedoria, o verdadeiro filósofo é amante de Deus: si sapientia Deus est…, verus philosophus est amator Dei. Deus é sabedoria, a filosofia é amor à sabedoria, como já o dizia Aristóteles. Então, para o cristão, o verdadeiro filósofo é aquele que ama Deus. Confunde-se o amor à sabedoria com o amor a Deus. E há um outro texto dele também extremamente enérgico: non intratur in veritatem, nisi per caritatem – só se entra na verdade, pela caridade, pelo amor.

Isto naturalmente leva à afirmação da liberdade. Reparem que essa descoberta do homem interior, do homem íntimo, da capacidade que tem, pela condição espiritual, de entrar em si mesmo, faz com que o homem seja livre. Sua liberdade é absolutamente fundamental, e, claro, está na própria entranha do cristianismo: “a verdade vos fará livres”. E ele proseguirá: ama et quod vis fac, ama e faze o que queiras, sentença extremamente enérgica de Santo Agostinho. Faze o que queiras. Se repararmos bem, não está tão longe de Kant.

Ama e faze o que queiras; o que queiras, não o capricho, não o teu bel-prazer, mas sim o que possas querer, o que possas verdadeiramente querer. Isso está a dois passos da idéia de Kant, para quem o único bem é a boa vontade. É a única coisa que é verdadeiramente valioso para Kant: o que podemos querer. Não os sentimentos, não o capricho, não, não… mas o que possas realmente querer. Ama e faze o que queiras. Se fazes realmente por amor, podes fazer o que queiras. O que possas querer realmente, o que possas querer amorosamente, por amor. Naturalmente, se se suprime o “ama”, destrói-se a frase, como é natural. Não é “faze o que queiras”, o capricho, ou o que te agrade, ou o que te convenha; não, não, pelo contrário.

Se falarmos de estilos na filosofia, este é um estilo totalmente novo. A palavra filosofia, desde Santo Agostinho, quer dizer outra coisa. Os senhores diriam: mas isso estava claro? Não, é muito raro que as coisas estejam claras. Se olharmos as coisas que estão aí, que foram conhecidas, que foram expressas, que foram formuladas, às vezes de modo genial, com um talento como o de Santo Agostinho, veremos que muitas vezes passa-se à margem delas. Dizia Aristóteles que a sabedoria é descoberta e depois esquecida. Sim, e não somente a sabedoria em geral, mas em cada época. Seria interessante explorar isso, sei lá, poder-se-ia escrever um livro extraordinário, só sobre os esquecimentos do homem, sobre as coisas que foram vistas, compreendidas, entendidas, que uma vez o homem as conquistou, e depois as abandonou, as esqueceu…

É curioso como a mudança de pensamento, que poderia incluir um acréscimo, um acréscimo constante, uma aquisição, uma incorporação de novas visões, de novas realidades, a inclusão de verdades novas… raramente é assim. Quando aparece algo novo, quase sempre aparece com algumas perdas, com esquecimentos, com falta de algo que já tinha sido conquistado, mas que em certo momento se debilitou, perdeu o vigor, perdeu a vigência e assim foi abandonado.

Convém que neste curso, que precisamente trata dos estilos do pensamento, olhemos para trás com muita freqüência. Não se esqueçam da brevíssima vigência do pensamento mais genial, talvez o maior de toda a história da filosofia, que é o de Platão e de Aristóteles. Como filósofos, provavelmente sejam os dois cumes da história da filosofia inteira. Nós lhes devemos uma proporção quase inimaginável do que possuímos, e no entanto, os senhores lembrem-se de como logo após a morte de Platão, e depois logo após a morte de Aristóteles, desapareceu do horizonte essa forma de pensamento, esses dois cumes extraordinários. Partiu-se para um outro nível. Há muito tempo, Ortega disse: a filosofia é questão de nível. Surpreendi-me quando ouvi essa frase, mas agora vejo que tem um imenso valor. Efetivamente, a filosofia é questão de nível. E cada filosofia tem o seu nível, e esse nível não é que esteja dado, chega-se a ele, e pode-se perdê-lo. E, de fato, perde-se uma e outra vez. E hoje falamos justamente de um dos cumes do pensamento, um cume que teve uma longa e verdadeira vigência.

Se a capacidade de visão, se a capacidade de inovação de Santo Agostinho tivesse sido conservada ao longo dos séculos, aonde teria chegado o pensamento, esse pensamento agostiniano, fiel a Santo Agostinho? Às vezes passivamente fiel, talvez sem o impulso criador e inovador que Agostinho tinha, mas foi conservado com bastante fidelidade, com algumas perdas e com certo distanciamento, talvez com esquecimento daquilo que é mais criador, daquilo que era verdadeiramente o fermento de Santo Agostinho.

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A Tradição Apostólica, de Santo Hipólito

Hipólito, nascido provavelmente na segunda metade do séc. II, teria sido, conforme o testemunho de alguns Padres da Igreja, bispo, porém não é possível precisar o lugar de sua sede. Sabe-se que ele mesmo afirmou ser discípulo de Irineu e foi o último escritor a se utilizar, em Roma, da língua grega.

Escritor erudito, transmite seus conhecimentos sem recorrer ou citar as fontes. Na época em que a Igreja tornou a penitência mais branda para os pecadores, Hipólito desentende-se com a autoridade máxima da Igreja, isto é, o papa e acaba sendo eleito antipapa por um pequeno grupo de cristãos moralistas. É exilado pelo imperador na Sardenha e aí morre em 235, juntamente com o papa Ponciano (que também fora exilado), com quem se conciliou algum tempo antes, voltando, assim, ao seio da Igreja.

Muitos obras são atribuídas a Hipólito, mas a “Tradição Apostólica” foi uma das poucas que restaram e, talvez, a mais importante, já trata-se da constituição eclesiástica mais antiga que possuímos.

Entre os diversos destaques desta obra, assinalamos os seguintes: a existência de ministérios ordenados (bispos, presbíteros e diáconos) e não ordenados (viúvas, virgens, leitores, etc.); as profissões incompatíveis com o cristão; o catecumenato fixado em três anos; o batismo estendido também às crianças; a oração eucarística e os cuidados devidos ao pão e ao vinho, Corpo e Sangue do Senhor; e a eficácia da oração na vida do cristão (celebrada várias vezes ao dia), em especial o sinal da cruz.

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O artigo do Professor Felipe Aquino

O apresentador da TV Canção Nova, escritor e professor Felipe Aquino está sendo perseguido, caluniado, xingado e espezinhado por ter exortado os bispos da CNBB a retornarem à Doutrina da Igreja, e fazendo-o por correspondência, sem ostentação ou estardalhaço. Foi armado o forrobodó algum tempo depois, pelo nosso clero engajado. O artigo que iniciou o movimento CNBBista tem esse título: O que é a Teologia da libertação? E a pergunta já foi respondida, pelo judeu David Horowitz: “A teologia da libertação é uma seita satânica.” Acho que vou mandar essa definição, por e-mail, a Felipe Aquino. Ele saberá com que pessoas está discutindo.

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Santo Efrém, o Sírio

Efrém nasceu em 306 em Nisibina ou em seus arredores (Mesopotâmia). Depois de ter estudado junto ao bispo daquela cidade, Jacob (Jaime) se converteu no animador de uma escola de doutrina, poesia e canto. Refugiou-se em Edesa no ano 367, por causa da ocupação persa de Nisibina, e nela prosseguiu suas atividades de ensinamento, unidas a composição de muitos escritos exegéticos, catequéticos e hinos em siríaco. Sua exuberância poética era tão grande e tal o gosto dos sírios pela poesia, que muitas homilias estão compostas em versos. Recebeu o título de “Profeta dos Sírios” e “Cítara do Espírito Santo” e a tradição se alegrou em engrandecê-lo, ao estilo dos dois primeiros apotegmas, atribuindo-lhe a concessão milagrosa dos carismas da palavra, da sabedoria e também das lágrimas. A respeito dele foi escrito que era tão natural vê-lo chorar como respirar. Levou, desde muito jovem, juntamente com outros, vida comum na castidade, pobreza e penitência e retiro, compatível, não obstante, com o ensinamento e a pregação. Foi ordenado diácono, mas não sabemos exatamente quando. Muitos são os escritos sobre a sua vida, mas lamentavelmente, mistura-se muitos elementos lendários. Várias fontes revelam que se ocupou com grande generosidade a assistência aos enfermos, famintos, dando sepultura aos mortos numa época de grande miséria. Seja verdadeira ou não esta informação, é de grande significado, pois a Tradição queria transmitir dele um perfil completo, não só como grande escritor e compositor de hinos, como também, a imagem de um diácono entregue ao serviço dos mais necessitados.

Morreu no ano 373, sendo tão venerado que rapidamente seus hinos e outros escritos foram introduzidos nas celebrações litúrgicas. Seus escritos foram traduzidos para o grego e latim e, com adaptações, introduzidos em muitíssimas recopilações; sob o impulso do grande, ainda que ingênuo, entusiasmo e amor que se lhe professava, atribuíram-lhe falsamente muitas obras que não o pertenciam.

A Dormição de Santo Efrém

A grandeza de Santo Efrém chegou ao seu ponto mais elevado nos cantos de louvor à Mãe de Deus. Faltava ainda muito tempo para o Concílio de Éfeso e já o pensamento de Efrém sobre ela havia adquirido um grande desenvolvimento e aprofundamento. Nela contempla e celebra a extraordinária beleza e vê refulgir nela, mediante uma co-participação extremamente contínua e privilegiada, a conformidade com Cristo: o Senhor e sua Mãe são os únicos seres perfeitamente belos neste mundo contaminado; na Senhora, resplandece uma semelhança com Deus única e excepcional. Estes pensamentos são expressados de maneira repetida por Efrém, sobretudo nos Hinos para a Natividade.

O padre Efrém teve, quando criança, um sonho ou uma visão: saía uma videira de sua boca e crescia e enchia toda terra; e estava completamente cheia de ramos; e vieram todos os pássaros do céu e comeram do fruto da videira. Mas, quanto mais comiam, mais se multiplicavam os frutos.

Outra vez, um dos santos teve esta visão: um exército de anjos descia do céu por ordem de Deus e levava um rolo na mão, ou seja, um volume escrito de ambos os lados. E se perguntavam: “a quem devemos confiá-lo?” Uns diziam: “a este”; outros diziam: “a este outro”; finalmente, se decidiram e disseram: “verdadeiramente são santos e dignos, mas a ninguém pode ser confiado este livro senão a Efrém”. Logo viu o ancião que entregavam o volume a Efrém; … Ao amanhecer, quando se levantou, ouviu como um fonte que brotava da boca de Efrém, enquanto compunha, e soube assim que provinha do Espírito Santo o que saía de seus lábios.

Um dia, enquanto Efrém passeava pelo caminho, surgiu uma meretriz de emboscada para seduzi-lo ou, ao menos, para provocá-lo, posto que ninguém o havia visto jamais preso pela ira. Ele a disse: “segue-me”. Quando chegaram a um lugar muito movimentado, disse-lhe: “faz o que queres aqui, neste lugar”. Mas ela, vendo a multidão disse: “como podemos fazer diante desta grande multidão sem sentir vergonha?” E ele respondeu: “se nos envergonhamos diante das pessoas, tanto mais deveríamos nos envergonhar diante de Deus que escuta no segredo das trevas. E ela, cheia de vergonha, afastou-se sem ter realizado o que pretendia.

Fonte:

Vita e Detti dei Padri del Deserto, Cittá Nuova Editricci, Roma, 1990.

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Epístola a Diogneto

Exórdio

Excelentíssimo Diogneto,

1. Vejo que te interessas em aprender a religião dos cristãos e que, muito sábia e cuidadosamente te informaste sobre eles: Qual é esse Deus no qual confiam e como o veneram, para que todos eles desdenhem o mundo, desprezem a morte, e não considerem os deuses que os gregos reconhecem, nem observem a crença dos judeus; que tipo de amor é esse que eles têm uns para com os outros; e, finalmente, por que esta nova estirpe ou gênero de vida apareceu agora e não antes. Aprovo este teu desejo e peço a Deus, o qual preside tanto o nosso falar como o nosso ouvir, que me conceda dizer de tal modo que, ao escutar, te tornes melhor; e assim, ao escutares, não se arrependa aquele que falou.

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A Natureza e a Graça

Fonte

1. A natureza (decaída) tem como fim apenas a si própria
1. A graça (i. é, a verdadeira natureza, restaurada pela graça do Salvador) opera por virtude de Deus, em Quem repousa seu fim.

2. A natureza não quer ser mortificada, nem vencida, nem submetida, nem quer se submeter.
2. A graça suporta a mortificação, resiste à sensualidade, não afeta deleitar-se na própria liberdade

3. A natureza trabalha em prol de seu interesse, calcula o ganho que pode auferir de outrem (Exploração do homem pelo homem).
3. A graça não busca a utilidade nem a vantagem própria, mas sim o que pode ser útil a outrem (Devotamento ao próximo).

4. A natureza é amiga das honrarias (sobretudo quando se acompanham de agrados).
4. A graça sempre se presta à honra e à glória de Deus

5. A natureza é amiga da ociosidade (um dos mais fecundos princípios da imoralidade).
5. A graça sai em busca do trabalho. (O trabalho realizado conforme a Deus é essencialmente moralizador).

6. A natureza cobiça os bens temporais (como se a felicidade estivesse naquela posse).
6. A graça aspira aos bens eternos, não se apega aos temporais; possui seu tesouro no Céu, onde não há corrupção (Daí sermos generosos com os pobres).

7. A natureza é avara, e gosta mais de receber do que dar.
7. A graça é desinteressada, contenta-se com pouco, e julga ser maior felicidade dar a receber.

8. A natureza inclina-se às criaturas, à carne, à vaidade, à distração.
8. A graça conduz a Deus, à virtude, expulsa os desejos da carne, reprime nossos ímpetos.

9. A natureza tudo faz pelo ganho e interesse próprio (é o reino do egoísmo).
9. A graça não busca vantagens temporais, e só pede a Deus por recompensa (Princípio da devoção e do desinteresse).

10. A natureza sorri aos poderosos e enaltece os ricos (com intenção de atrair para si uma espécie de sombra, um reflexo do poder e das riquezas alheias).
10. A graça é mais instante ao pobre que ao rico, e agrada-se mais do inocente que do poderoso (inclinando-se aos mais fracos, ela dá-lhes apoio, e recebe deles protestos de estima a Deus).

11. A natureza reduz tudo a si própria (clama por igualdade, para pôr tudo sob seu domínio).
11. A graça reduz tudo a Deus, princípio de todas as coisas (eis a ordem verdadeira, fora da qual não há liberdade).

12. A natureza gosta de exterioridades e de que os sentidos provem por meio da experiência uma multidão de coisas (Nisso, assemelha-se a Eva, que se deleitou na visão, no tato e no paladar).
12. A graça não cuida do que é novidade ou curiosidade: ela sabe que tudo isso é efeito da corrupção antiga (da natureza, da qual fomos remidos e libertos por Nosso Senhor Jesus Cristo).

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Como tratar o homossexualismo?

Fonte

De Estêvão Bettencourt, na revista Pergunte e Responderemos. Deixarei como imagem, e em breve tomarei algumas medidas para facilitar a leitura.

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O que é o aborto?

Carta enviada ao Globo, de D. Estêvão Bettencourt:

O ABORTO É HOMICÍDIO

Em resposta ao artigo publicado sobre a Igreja e o aborto, desejo observar que toda a argumentação em favor do aborto cai por terra desde que se considere que o aborto é um homícidio…, e homicídio tal como não ocorria nem mesmo nos campos de concentração nazistas (onde havia câmaras de gás e fuzilamentos). No aborto a criança é dilacerada, despedaçada…; tem uma tesoura fincada no seu pescoço; o seu cérebro é sugado, de modo a causar o colapso do bebê, que vem finalmente arrancado do seio materno. E isto tudo é cometido geralmente a pedido da mãe ou com o consentimento dela. Tal prática fere não somente a criança, mas também o senso humanitário de qualquer criatura mentalmente sadia; fere principalmente o senso maternal da mulher. Muito mais nobre, da parte da mãe, é não matar o filho, deixá-lo nascer e entregá-lo a um casal ou a uma instituição (se não o quer ou não o pode educar). Aliás, quem é contrário à pena de morte para um criminoso, com mais razão deve ser contrário à pena de morte para uma criança inocente. Quanto à posição da Igreja frente ao aborto através dos séculos, o fato é que a Igreja sempre considerou ilícito o aborto, mesmo quando se pensava que a animação do feto se dava no 40º ou 80º dia; seria sempre o morticínio de um ser humano em formação.

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Epístola a Diogneto

Pequena jóia da literatura cristã, tanto pela profundidade espiritual do conteúdo, como pela beleza estilística e retórica da forma, mas também pela modernidade e pela atualidade de muitos temas discutidos e em particular pela dimensão política da vida cristã.

Giovanni Reale – Dario Antiseri
História da Filosofia: Patrística e Escolástica

A Epístola a Diogneto foi um dos primeiros tratados apológéticos escritos pelos Cristãos, figurando entre os melhores. Foi endereçada a um tal Diogneto (um título honorífico à época do Império Romano, e por isso imagina-se que se destinava ao Imperador) no final do século II, redigida em Atenas. Já Giovanni Reale fez seu comentário. Vejamos a própria epístola:

1. A identidade dos cristãos: vivem neste mundo, cidadãos de um outro

Os cristãos, com efeito, não se diferenciam dos outros homens nem pelo território nem pela língua ou costumes. Não habitam em cidades próprias nem falam uma linguagem inusitada; a vida que levam nada tem de estranho. Sua doutrina não é fruto de considerações e elucubrações de pessoas curiosas, nem se apresentam como promotores, como alguns, de alguma teoria humana. Habitando nas cidades gregas e bárbaras, como coube a cada um, e conformando-se com os costumes locais no que se refere ao vestuário, à alimentação e ao resto da vida cotidiana, demonstram o caráter admirável e extraordinário, no dizer de todos, de seu sistema de vida. Habitam na própria pátria, mas como estrangeiros, participam de tudo como cidadãos, e tudo suportam como forasteiros, qualquer terra estrangeira é sua pátria e qualquer pátria é terra estrangeira.

Casam-se como todos, geram filhos, mas não expõem os recém-nascidos. Têm em comum a mesa, mas não o leito. Estão na carne, mas não vivem segundo a carne. Moram sobre a terra, mas são cidadãos do céu. Obedecem às leis estabelecidas, e com sua vida superam as leis. Amam a todos e são perseguidos por todos. Não são conhecidos, e assim mesmo são condenados; são mortos, e todavia são vivificados. São pobres e enriquecem a muitos; são carentes de tudo e têm abundância de tudo. São desprezados, mas no desprezo adquirem glória; são xingados e ao mesmo tempo se dá testemunha de sua justiça. São ultrajados e bendizem; são insultados e, ao contrário, honram. Embora realizem o bem, são punidos como malfeitores; embora punidos, se alegram, como se recebessem a vida.

São combatidos pelos judeus como estrangeiros e são perseguidos pelos gregos, mas quem os odeia não sabe explicar o motivo da própria aversão em relação a eles.

Enfim, para dizer brevemente, os cristãos desenvolvem no mundo a mesma função da alma no corpo. A alma está espalhada em todos os membros do corpo; também os cristãos estão espalhados pelas cidades do mundo. A alma habita no corpo, mas não pertence ao corpo; também os cristãos habitam no mundo, mas não pertencem ao mundo. A alma invisível está aprisionada no corpo visível; os cristãos, estando no mundo, são visíveis, mas o culto que dirigem a Deus permanece invisível. A carne odeia a alma e a combate, embora sem receber nenhuma injustiça, porque a impede de abandonar-se aos prazeres; também os cristãos são odiados pelo mundo, embora não lhe façam nenhum mal, porque se opõem aos prazeres. A alma ama a carne e os membros que a odeiam, assim como os cristãos amam quem os odeia. A alma, que também sustenta o corpo, está presa neste; também os cristãos, embora sejam o apoio do mundo, são aprisionados neste como em um cárcere. A alma imortal habita em uma moradia mortal; também os cristãos vivem como estrangeiros entre aquilo que é corruptível, enquanto esperam a incorruptibilidade celeste. Com as mortificações no comer e no beber, a alma se torna melhor; os cristãos, embora perseguidos, a cada dia se tornam mais numerosos.

Deus lhes reservou um lugar tão sublime, e a eles não é lícito abandoná-lo

2. O cristianismo e o desígnio transcendente da salvação

Com efeito, conforme disse, não é uma invenção terrena o que lhes foi transmitido, nem afirmam guardar com tanto cuidado uma doutrina passageira, nem lhes foi confiado o encargo de dispensar mistérios humanos. Mas aquele que é verdadeiramente onipotente, criador de tudo, Deus invisível, dos céus pôs entre os homens e estabeleceu em sues corações a Verdade, o Verbo santo e incompreensível; não enviou aos homens, como alguém poderia imaginar, um servo, um anjo, um arconte ou um dos seres a quem fosse confiado o governo da terra ou a administração nos céus, mas o próprio artífice e autor de tudo. Por meio dele criou os céus, encerrou o mar em seus próprios confins; seus mistérios são fielmente guardados por todos os elementos. É ele que faz o sol observar as leis que regulam seu curso cotidiano, sua ordem de brilhar durante a noite é obedecida pela lua e a ele obedecem os astros que seguem o curso da lua; ordenou e dispôs tudo, e a ele estão submetidas todas as coisas: os céus e tudo o que neles há, a terra e tudo o que ela contém, o mar e aquilo que nele existe, o fogo, o ar, o abismo, aquilo que está no alto, nas profundezas e no meio. Este é aquele que foi enviado aos homens.

Talvez, poderia alguém pensar, para mandar, amedrontar, aterrar? De modo nenhum. Ao contrário, foi enviado na humildade e bondade, como um rei manda seu filho rei, foi enviado como Deus, como homem entre os homens, para salvar com a persuasão, não para dominar, pois a violência não se coaduna com Deus. [Deus] o enviou para chamar, não para acusar; para amar, não para julgar, e quem poderá agüentar sua vinda? […] [Não vês que os cristãos] são jogados às feras, para que reneguem o Senhor, e todavia não se deixam vencer? Não vês que quanto mais são perseguidos, tanto mais crescem em número? Isto não parece obra humana, isto é poder de Deus; esta é uma prova da sua presença.

Com efeito, quem entre os homens conhecia plenamente a essência de Deus, antes da sua vinda?

Crês talvez nos discursos vazios e insossos daqueles filósofos considerados dignos de fé? Alguns destes diziam que Deus é fogo: chamam Deus aquilo em que irão acabar; outros o identificavam com a água, outros com algum outro elemento criado por Deus. Certamente, se for aceito algum destes raciocínios, qualquer outro ser criado poderia igualmente ser identificado com Deus. Mas estas são fofocas e imposturas de charlatães; nenhum homem viu ou conheceu Deus, mas ele próprio se revelou. Revelou-se por meio da fé, e apenas com ela é possível ver Deus.

Ele, com efeito, senhor e criador de tudo, autor e ordenador de todas as coisas, mostrou para com os homens não só amor, mas também paciência.

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A Igreja já foi a favor do aborto?

Fonte

Clareza, objetividade, e uma honestidade intelectual rara entre os estudiosos brasileiros. São estes os três traços que eu noto no que D. Estêvão Bittencourt escreve. Monge beneditino, suas observações e sua abrangência serão reconhecidas nesta exposição sobre o aborto. Boa leitura!

Em síntese: A Igreja sempre foi contrária ao aborto, ou seja, ao morticínio de uma criança contida no seio materno. Já no século I se encontra um testemunho deste repúdio na Didaqué. Os Concílios regionais, desde o de Elvira (início do século IV), foram impondo penas severas aos réus de aborto. O Direito Canônico hoje vigente, fazendo eco às diretrizes do passado, prevê a excomunhão latae sententiae para quem provoque o aborto (seguindo-se o efeito). Todavia até época recente os cientistas hesitaram sobre o momento em que tem início a vida humana: seria imediatamente após a concepção ou após a fecundação do óvulo? Ou haveria, conforme pensava Aristóteles, um intervalo (de 40 ou 80 dias) entre a concepção e a animação do feto? A hesitação da ciência, bem compreensível, dada a falta de meios de pesquisa, fez que vários teólogos católicos julgassem com menos severidade a eliminação do feto antes do 40.º dia (no caso dos indivíduos masculinos) ou antes do 80.º dia (no caso dos indivíduos femininos). Note-se bem: sempre foi condenada a ocisão de uma criança; a hesitação versava apenas sobre a questão de saber se já existe verdadeiro ser humano desde o momento da concepção.

 

Nos recentes debates públicos sobre o aborto tem sido considerada a posição da Igreja em termos que deixam interrogações na mente da sociedade brasileira. Entre outras coisas, diz-se que a Igreja não tem autoridade para impugnar o aborto, pois que ela o permitiu desde o século IV até o século XIX. A afirmação é realmente surpreendente e exige esclarecimentos e retificações. Encararemos, a seguir, o assunto, tratando primeiramente dos pronunciamentos oficiais da Igreja sobre o aborto através dos séculos; após o quê voltar-nos-emos para a questão do início da vida humana, que deixou dúvidas em escritores de todos os séculos até época recente.
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A Escola Catequética de Alexandria: Clemente e Orígenes

Por volta de 180, em Alexandria, um estóico que se converteu ao Cristianismo, Panteno, fundou uma escola catequética, que estava destinada a encontrar seu máximo esplendor com Clemente e Orígenes.

Clemente nasceu em torno de 150 (em Atenas ou Alexandria). Seu encontro com Panteno foi decisivo: tornou-se seu aluno, colaborador e, por fim, sucessor. Dele nos ficaram o Protréoptico aos Gregos, o Pedagogo, os Estrômatas, uma Homilia e diversos fragmentos.

Um dos maiores estudiosos modernos da Patrologia, Quasten, assim caracteriza o nosso autor: “A obra de Clemente de Alexandria marca toda uma época. Não seria exagero louvar nele o fundador da teologia especulativa. Clemente foi o iniciador arguto e feliz de uma escola que se propunha a defender e aprofundar a Fé com o auxílio da Filosofia.” Clemente não se limita a combater a falsa gnose [o próprio Santo Irineu afirma que o nome ‘gnose’ é uma usurpação feita pelos hereges, um slogan falso], nem se detém numa atitude puramente negativa. Com efeito, ele opõe à falsa gnose uma gnose autenticamente cristã, propondo-se a dispor a serviço da Fé o tesouro encerrado nos diversos sistemas filosóficos. Os partidários da gnose herética ensinavam a impossibilidade de uma conciliação entre ciência e fé, nas quais viam dois elementos contraditórios.

Clemente, porém, procura demonstrar a sua harmonia. É a concordância da Fé (pistis) com o conhecimento (gnosis) que faz o perfeito cristão e o verdadeiro gnóstico. A Fé é o princípio e o fundamento da Filosofia. Esta, por seu turno, é da máxima importância para o cristão desejoso de aprofundar o conteúdo de sua Fé por meio da razão. Acrescida á Fé, a Filosofia não torna a verdade mais forte, em si mesma, mas torna impotentes os ataques dos inimigos da verdade, constituindo portanto um válido baluarte de defesa. Contudo, para Clemente, a fé permanece como critério da ciência. E a ciência constitui um auxílio de caráter como que ancilar para a fé.

O conceito que constitui o eixo básico das reflexões de Clemente é o conceito de Logos, entendido em triplo sentido:

A) princípio criador do mundo;

B) princípio de toda forma de sabedoria, que inspirou os profetas e os filósofos;

C) o princípio de salvação (Logos encarnado).

O Logos é verdadeiramente o princípio e fim, o alfa e o ômega, aquilo de que tudo provém, e para onde tudo retorna; o Logos é Mestre (Pedagogos) e Salvador. É no Logos que a ‘justa medida’, que era a marca da antiga sabedoria e da virtude grega, se integra no ensinamento de Cristo, como mostra exemplarmente esta passagem do Pedagogo:

“Graças á familiaridade com a virtude, só pelo Logos somos feitos semelhantes a Deus. Mas trabalha sem perder a coragem. Serás como não esperas nem como poderias imaginar. E, assim como uma é a educação dos filósofos, outra a dos oradores, outra a dos lutadores, também há uma livre disposição da alma harmonizada com uma livre vontade amante do bem, que deriva da pedagogia de Cristo. Até as ações materiais, se bem educadas, tornam-se santas, como o caminhar, o repouso, o alimento, o sono, o leito, a comida e toda a educação. Por fim, a formação do Logos não está voltada para o excesso, mas para dar uma justa medida. Por isso, portanto, o Logos também é chamado Salvador, no sentido que revelou aos homens estes remédios racionais, para que sintam retamente e tenham a salvação, esperando o momento oportuno, censurando o vício, extirpando as causas das paixões e cortando as raízes dos desejos contrários á razão, indicando as coisas de que precisa se abster e propondo aos doentes todos os antídotos da salvação. Essa é a maior e mais régia obra de Deus: salvar a humanidade.”

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Atenção!

Se você acha que a Filosofia Cristã foi superada; que a Igreja é arcaica e precisa progredir; que o Cristianismo é irracional; que os Cristãos são incapazes de responder a críticas; que a Teologia moderna é superior à antiga, retrógrada; que a Patrística pertence a um contexto histórico incompatível com a modernidade; que a Igreja sempre controlou consciências;... Suma desse site. Vá ler o Código da Vinci, e faça bom proveito.

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