Etienne Gilson
O último grande nome da patrística grega conhecida da Idade Média é o de João de Damasco, dito João Damasceno (falecido em 749). Sua obra mestra, A fonte do conhecimento (Pegé gnôseôs), contém uma introdução filosófica, depois uma breve história das heresias, enfim, numa terceira parte, uma coletânea de textos, tomados de seus predecessores e dispostos em ordem sistemática, sobre as verdades fundamentais da religião cristã. Essa última parte, traduzida em 1151 por Burgúndio de Pisa (o tradutor de Nemésio), servirá de modelo para as Sentenças de Pedro Lombardo. É a obra que encontraremos citada com freqüência no século XIII, sob o título de De fide orthodoxa.
João Damasceno não pretendeu ser um filósofo original, mas constituir uma coletânea cômoda de noções filosóficas úteis ao teólogo, e certas fórmulas que pôs em circulação tiveram extraordinário sucesso. Desde o início do De fide orthodoxa, ele afirma que não há um só homem em que não esteja naturalmente implantado o conhecimento de que Deus existe. Essa fórmula será citada inúmeras vezes na Idade Média, ora com aprovação, ora para ser criticada. Aliás, não parece que João Damasceno fale, aqui, de um conhecimento inato propriamente dito, pois enumera como fontes desse conhecimento a vista das coisas criadas, sua conservação e a ordem que elas observam; em seguida, a Lei e os Profetas; enfim, a revelação de Jesus Cristo. Ademais, desde o capítulo III, João Damasceno empreende demonstrar a existência de Deus, porque, diz ele, embora o conhecimento de Deus esteja naturalmente implantado em nós, a malícia de Satanás obscureceu-o tanto, que o insensato chegou a dizer em seu coração: Deus não existe (Ps 13, 1). Deus provou que existe por seus milagres, e seus discípulos fizeram-no pelo dom de ensinar que dele receberam: “Mas nós, que não recebemos nem o dom dos milagres, nem esse dom do ensino (porque nos tornamos indignos disso por uma excessiva propensão às volúpias), precisamos discorrer sobre esse tema, com base no pouco que os intérpretes da graça nos disseram.” É por isso que, aplicando o princípio paulinista de que Deus nos é conhecível a partir das criaturas, João Damasceno estabelece a existência de Deus mostrando que tudo o que nos é dado na experiência sensível é mutável; que mesmo as almas e os anjos o são; que nada do que vem a ser por via de mudança é incriado; que tudo o que nos é dado assim é criado e que, por conseguinte, seu criador incriado existe. Um segundo argumento, tirado da conservação e do governo das coisas, confirma o primeiro, e a demonstração se acaba com um terceiro, que prova, contra Epicuro, que a ordem e a distribuição das coisas não podem resultar do acaso. Esse Deus, cuja existência é assim provada, nos é inconhecível. João Damasceno afirma-o em termos tão enérgicos quanto possível: “Que Deus existe, é manifesto; mas o que ele é quanto a seu ser e a sua natureza nos é inteiramente inapreensível e desconhecido” (akatalepton touto pantelôs kai agnôstorí). Sabe-se que Deus é incorpóreo. Ele não é sequer feito da matéria incorpórea que os sábios gregos chamam de “quintessência”. Semelhantemente, Deus é não-gerado, imutável, incorruptível e assim por diante; mas tais nomes nos dizem o que ele não é, não o que ele é. Tudo o que se pode compreender acerca dele é que ele é infinito e, por conseguinte, incompreensível. Quanto aos nomes positivos que lhe damos, tampouco dizem o que Deus é e não descrevem sua natureza, mas o que convém a ela. Dizemos que o incompreensível e o inconhecível, que é Deus, é uno, bom, justo, sábio e assim por diante, mas a enumeração desses atributos não nos faz conhecer a natureza ou a essência daquilo a que os atribuímos. De fato, como o Bem de Platão, o Deus de João Damasceno está além do conhecimento, porque está além da essência (cap. IV). Aliás, é nesse sentido que João Damasceno interpreta inclusive o nome que Deus se atribuiu no célebre texto do Êxodo (3, 14): “Eu sou o que sou (o ôri).” Considerando-o bem, esse nome designa de fato sua própria incompreensibilidade, pois significa que Deus “possui e reúne em si a totalidade do ser, como um oceano de realidade (ousias) infinito e ilimitado” (I, 9). Essa fórmula será retomada e comentada com freqüência na Idade Média, notadamente por santo Tomás de Aquino. Por seu plano de conjunto, que compreende o estudo dos anjos, do céu visível, dos astros, dos elementos, da terra e do homem, De fi-de orthodoxa já se apresenta como uma obra de aspecto nitidamente escolástico, bem feita para seduzir os espíritos do século XIII e servir de modelo a seus Comentários sobre as Sentenças, ou a suas Sumas teológicas. Não só eles se inspirarão em seu plano, mas o explorarão como uma verdadeira mina de noções e de definições, muitas das quais eram imediatamente utilizáveis por teólogos nutridos de Aristóteles. Os capítulos XXII-XXVIII do livro II, sobre a vontade, a distinção entre o voluntário e o não-voluntário, o livre-arbítrio considerado em sua natureza e sua causa, transmitiram, assim, à Idade Média várias noções, muitas das quais eram de origem aristotélica, mas que João Damasceno havia talvez simplesmente recolhido na obra de Gregório de Nissa ou de Nemésio. Sem ser ele mesmo um pensador de muito alto nível, ele representou, como transmissor de idéias, um papel considerável. Devemos certamente ver nele um dos intermediários mais importantes entre a cultura dos Padres Gregos e a cultura latina dos teólogos ocidentais da Idade Média.
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