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Obras da Patrística

Exulte

Em tradução portuguesa:

 

Exulte de alegria a multidão dos anjos,
Exultem de Deus os ministros;
soe a triunfal trombeta,
Esta vitória de um tão grande Rei!

Alegra-te também, ó terra nossa
Que em tantas luzes agora resplandeces,
Vê como foge do universo a treva,
Enquanto fulge a luz do eterno Rei!

Alegra-te também, ó Mãe Igreja,
Ornada inteira de esplendor divino,
Escuta como vibra neste templo
A aclamação do povo!

V. O Senhor esteja convosco!
R. Ele está no meio de nós!

V. Corações ao alto!
R. O nosso coração está em Deus!

V. Demos graças ao Senhor nosso Deus!
R. É nosso dever e nossa salvação!

Na verdade é nosso dever e salvação
cantar de coração e a plena voz
ó Pai todo-poderoso, Deus invisível,
e seu único Filho, Jesus Cristo Senhor nosso.

Foi Ele quem pagou por nós ao Pai eterno,
o preço da dívida de Adão,
e foi quem apagou só por amor, no sangue derramado,
a condenação da antiga culpa.

Eis, pois a festa da Páscoa,
na qual foi posto à morte o verdadeiro Cordeiro,
cujo sangue consagrou
as portas dos fiéis.

Eis a noite, em que tirastes do Egito
os nossos pais, os filhos de Israel,
a quem fizestes transpor
o Mar Vermelho a pé enxuto.

Eis a noite em que a coluna luminosa
dissipou as trevas do pecado.
Eis a noite que arranca ao mundo corrompido, cego pelo mal,
os que hoje, em toda a terra, puseram a sua fé no Cristo.

Noite em que os devolve à graça
e os introduz na comunhão dos santos.
Eis a noite em que o Cristo, quebrando os vínculos da morte,
sai vitorioso do sepulcro.

Oh! imensa comiseração da vossa graça,
imprevisível amor para conosco:
a fim de resgatar o escravo,
entregais vosso Filho.

Ó pecado de Adão sem dúvida necesário,
pois a morte do Cristo o destrói!
Bendita culpa,
que nos vale um semelhante Redentor!

Pois o poder santificante desta noite
expulsa o crime e lava as culpas,
devolve a inocência aos pecadores,
a alegria aos aflitos,
dissipa o ódio, prepara a concórdia,
desarma os impérios.
Noite em que o céu se une à terra,
e o homem com Deus se encontra.

Na graça desta noite, acolhei, Pai Santo,
como sacrifício de louvor vespertino,
a chama que sobe desta coluna de cera
que a igreja, por nossas mãos Vos oferece.

Por isto, Senhor, Vos pedimos:
fazei que este círio pascal
consagrado ao Vosso nome,
brilhe sem declínio e afugente as trevas desta noite.

Que o astro da manhã
o encontre ainda aceso,
aquele que não conhece ocaso:

o Cristo ressuscitado dos mortos,
que espalha sobre os homens sua luz e sua paz.
Ele que convosco vive e reina
na unidade do Espírito Santo.

R/. Amén.

Filed under: Poesia, Preces

O mistério da Páscoa: a novidade do Verbo encarnado

Melitão de Sardes

Compreendei, pois, caríssimos! É assim
novo e antigo,
eterno e temporal,
corruptível e incorruptível,
mortal e imortal
o mistério da Páscoa:
antigo segundo a Lei,
novo segundo o Verbo;
temporal na figura,
eterno na graça;
corruptível pela imolação da ovelha,
incorruptível pela vida do Senhor;
mortal pela sepultura, na terra,
imortal pela ressurreição dentre os mortos.

Antiga a Lei, novo o Verbo;
temporal a figura, eterna a dádiva;
corruptível a ovelha, incorruptível o Senhor,
o qual, imolado como cordeiro, ressurgiu como Deus.

Pois, como a ovelha, foi levado ao matadouro,
mas não era ovelha;
como o cordeiro, não abriu a boca,
mas não era cordeiro.

Passou a figura, persiste a realidade.

Em vez do cordeiro, Deus presente,
em vez da ovelha, um homem,
e neste homem, Cristo,
aquele que sustém todas as coisas.

Assim, o sacrifício da ovelha,
e a solenidade da Páscoa,
e a letra da Lei,
cederam lugar ao Cristo Jesus,
por causa do qual tudo sucedera na antiga Lei,
e muito mais sucede na nova disposição.

Pois a Lei se converteu em Verbo,
o antigo em novo,
ambos saídos de Sião, e de Jerusalém.

O mandamento se converteu em dádiva,
a figura em realidade,
o cordeiro em Filho,
a ovelha em homem,
o homem em Deus.

Com efeito, aquele que nascera como Filho,
e fora conduzido como cordeiro,
sacrificado como ovelha,
sepultado como homem,
ressuscitou dentre os mortos como Deus,
sendo por natureza Deus e homem.

Ele é tudo:
enquanto julga, é lei;
enquanto ensina, Verbo;
enquanto gera, pai;
enquanto sepultado, homem;
enquanto ressurge, Deus;
enquanto gerado, Filho;
enquanto padece, ovelha;
ele, Jesus Cristo,
a quem seja dada a glória pelos séculos. Amém.

Tal é o mistério da Páscoa,
como foi descrito na Lei
e como o acabamos de ler.

A salvação do Senhor e a realidade
foram prefiguradas no povo ( judeu),
as prescrições do Evangelho prenunciadas pela Lei.

O povo era como o esboço de um plano,
a Lei como a letra de uma parábola;
mas o Evangelho é a explicação da Lei e seu cumprimento,
e a Igreja o lugar onde isso se realiza.

O que existia como figura era valioso
antes que ocorresse a realidade,
maravilhosa a parábola antes que viesse a explicação.

O povo tinha seu valor antes que se estabelecesse a Igreja,
Lei era admirável antes que refulgisse o Evangelho.

Mas quando surgiu a Igreja e se apresentou o Evangelho,
esvaziou-se a figura, sua força passou para a realidade,
a Lei se cumpriu, transfundiu-se no Evangelho…

O povo perdeu razão de ser quando veio a Igreja,
a imagem se fez abolida quando apareceu o Senhor.

O que antes era valioso perdeu seu valor,
frente à manifestação do que era realmente valioso por natureza.

Valioso era antes o sacrifício da ovelha,
agora perdeu o valor, por causa da vida do Senhor.

Valiosa era a morte da ovelha,
agora perdeu o valor, por causa da salvação do Senhor.

Valioso era o sangue da ovelha,
mas perdeu o valor, por causa do Espírito do Senhor.

Valioso era o cordeiro que não abria a boca,
mas perdeu o valor, por causa do Filho sem mácula.

Valioso era o templo terreno,
mas perdeu o valor, por causa do Cristo celeste.

Valiosa era a Jerusalém de baixo,
mas perdeu o valor, por causa da Jerusalém do alto.

Valiosa era a pequena herança,
mas perdeu o valor por causa da amplitude do dom.

Porque não foi em parte alguma da terra,
em nenhuma faixa estreita da terra
que se estabeleceu a glória de Deus,
e sim por todos os confins se derramou seu dom,
em toda parte armou sua tenda o Deus onipotente.
Por Jesus Cristo,
a quem seja dada glória pelos séculos. Amém.

Deus, no princípio,
tendo criado pelo Verbo o céu,
a terra e tudo o que neles se encerra,
modelou do barro o homem
e comunicou-lhe seu sopro.

Colocou-o em seguida num jardim
voltado para o Oriente, o Eden,
para que ali vivesse feliz.
E deu-lhe um mandamento…

Mas o homem,
sendo por natureza capaz do bem e do mal,
como uma porção de terra
capaz de receber sementes boas e más,
escutou ao conselheiro hostil
e, tomando o fruto da árvore,
transgrediu o mandamento,
desobedeceu a Deus.

Por conseguinte,
foi deixado neste mundo,
como numa prisão de condenados.

Após muitos anos
e após gerar numerosa prole,
voltou à terra,
de cuja árvore colhera o fruto,
legando a seus filhos esta herança…

não a pureza, mas a luxúria,
não a imortalidade, mas a corrupção,
não a honra, mas a desonra,
não a liberdade, mas a escravidão,
não a realeza, mas a tirania,
não a vida, mas a morte,
não a salvação, mas a perdição.

Nova e terrível tornou-se a ruína dos homens sobre a terra.
Eis o que lhes aconteceu:
foram tiranizados pelo pecado,
e levados a lugares de concupiscência,
para viverem assaltados por prazeres insaciáveis,
pelo adultério, a fornicação, a impureza,
os maus desejos, a cobiça,
os homicídios, o derramamento de sangue,
a tirania da maldade e da injustiça.

Era o pai lançando a espada contra o filho,
o filho erguendo a mão contra o pai,
o ímpio golpeando a lactante,
o irmão ferindo o seu irmão,
o hospedeiro injuriando o hóspede,
o amigo assassinando seu amigo,
o homem degolando o semelhante.

Todos se transformaram na terra em homicidas,
fratricidas, parricidas, infanticidas…

E com isso exultava o Pecado:
colaborador da Morte,
precedia-a nas almas dos homens
e preparava-lhe como alimento os corpos mortos.
Imprimia em toda alma sua marca,
para fazer morrer os que a traziam.

Toda carne, pois, caiu sob o pecado,
e todo corpo sob a morte.

Toda alma foi arrancada de sua morada de carne
e o que foi tirado da terra se dissolveu na terra,
o que foi dado por Deus se encarcerou no Hades.

Estava destruída a bela harmonia,
desfeito o belo corpo.

O homem dividido sob o poder da morte,
estranha desgraça a aprisioná-la:
Era arrastado como cativo pelas sombras da morte,
jazia abandonada a imagem do Pai.

Eis a razão por que se cumpriu o mistério da Páscoa
no corpo do Senhor.

O Senhor havia ordenado de antemão seus próprios padecimentos nos patriarcas, nos profetas e em todo o povo, pondo como seu selo a Lei e os profetas. Pois o que devia realizar-se de modo inaudito e grandioso estava preparado desde muito, a fim de que ao suceder fosse crido, depois de tão vaticinado (…)

Antigo e novo o mistério do Senhor:
antigo na figura, novo no dom.
Se vês a figura,
verás a realidade ao longo de sua atuação.

Se queres contemplar o mistério do Senhor
verás Abel, assassinado como ele,
Isaac, aprisionado como ele,
José, vendido como ele,
Moisés, exposto como ele,
Davi, perseguido como ele,
os profetas padecendo como ele e por causa dele.

Contempla também o cordeiro degolado na terra egípcia,
que abateu o Egito e salvou a Israel por seu sangue (…)
Aquele que veio dos céus à terra por causa do homem que sofria,
e se revestiu do homem nas entranhas de uma Virgem,
aparecendo como homem.

Aquele que assumiu os sofrimentos de quem sofria,
tomando um corpo capaz de sofrer,
aquele que anulou os sofrimentos da carne,
destruindo com seu espírito imortal a morte homicida (…)

Aquele que nos tirou da escravidão para a liberdade,
das trevas para a luz,
da morte para a vida,
da tirania para o reino eterno.
Que fez de nós um sacerdócio novo
e um povo escolhido para sempre,
Ele, a Páscoa de nossa salvação…

Ele, que se encarnou numa Virgem,
se deixou suspender na cruz,
foi sepultado na terra,
ressuscitou dos mortos,
foi arrebatado aos céus.

Ele, o cordeiro emudecido,
o cordeiro imolado,
nascido de Maria, a ovelha bela,
o cordeiro levado do rebanho ao matadouro,
sacrificado à tarde, sepultado à noite.
Não lhe quebraram os ossos no madeiro,
na terra não sofreu a corrupção,
mas ressurgiu dentre os mortos,
ressuscitou o homem das profundezas do sepulcro.

Ele, entregue à morte.
Onde?
No meio de Jerusalém.
Por quê?
Porque curou os coxos,
purificou os leprosos,
trouxe a luz aos cegos,
despertou os mortos.
Por isto padeceu…

Por que cometeste, ó Israel, tão grande injustiça,
entregando teu Senhor a tais sofrimentos,
ele, teu amo,
ele, que te plasmou,
te criou,
te honrou,
te chamou Israel?

Não te mostraste” Israel” pois não viste a Deus,
não reconheceste o Senhor,
não soubeste ser ele o primogênito de Deus,
aquele que foi gerado antes da estrela matutina,
aquele que fez brotar a luz,
fez brilhar o dia,
separou as trevas,
firmou o primeiro fundamento,
suspendeu a terra,
secou o abismo,
estendeu o céu,
organizou o mundo,
dispôs no alto os astros,
fez resplandecer as estrelas,
fez os anjos celestiais,
fixou nas alturas os tronos,
modelou na terra o homem!

Ele, o que te escolheu e te guiou de Adão a Noé,
de Noé a Abraão,
de Abraão a Isaac, a Jacó e aos patriarcas;
aquele que te conduziu ao Egito e te protegeu e sustentou,
que iluminou teu caminho com a coluna de fogo,
te ocultou sob a nuvem,
e dividiu o mar Vermelho para atravessares suas águas.

Que dispersou teu inimigo,
te deu o maná do alto,
e a água da pedra.

Que te deu a Lei em Horeb,
e te fez herdar a terra,
que te enviou os profetas.

Verdadeiramente é amarga
conforme está escrito:
“Comereis pães ázimos com ervas amargas”.
Amargos para ti os cravos que afiaste,
amarga a língua que aguçaste,
amargas as falsas testemunhas que propuseste,
amargas as cordas que preparaste.
amargos os açoites que descarregaste,
amargo para ti foi Judas, a quem pagaste,
amargo Herodes a quem obedeceste,
amargo Caifás, em quem confiaste,
amargo o fel que ofereceste,
o vinagre que cultivaste,
amargos os espinhos que ajuntaste,
amargas as mãos que ensangüentaste.

Entregaste teu Senhor à morte, no meio de Jerusalém…

Ele, o Senhor, revestido do homem,
padecente pelo homem que sofria,
atado pelo homem prisioneiro,
julgado em prol do culpado,
sepultado pelo que jazia na terra,
ressurgiu dentre os mortos e clamou em alta voz:

“Quem se levantará em juízo contra mim?
Venha defrontar-se comigo!
Eu libertei o condenado,
vivifiquei o morto,
reergui o sepultado.

Quem me irá contradizer?
Eu, o Cristo, destruí a morte,
triunfei do inimigo,
esmaguei o inferno,
rnanietei o forte,
arrebatei o homem para as alturas dos céus.

Eu, o Cristo!
Vinde, pois, famílias dos homens manchadas por pecados,
recebei o perdão dos pecados!

Pois sou vosso perdão,
eu, a Páscoa da salvação,
O cordeiro imolado por vós,
a vossa redenção,
a vossa vida,
a vossa ressurreição,
a vossa luz,
a vossa salvação,
o vosso rei.

Eu vos elevarei à sublimidade dos céus,
e vos mostrarei o Pai que existe desde os séculos,
vos ressuscitarei por minha destra”.

A Ele, o Cristo,
o Alfa e o Omega,
o Começo e o Fim,
o Inenarrável Começo,
o Incompreensível Fim,
o Rei,
a Ele, Jesus,
o Chefe,
o Senhor,
O que ressurgiu dentre os mortos,
O que está assentado à direita do Pai,
O que conduz ao Pai e é conduzido pelo Pai,
a Ele, glória e poder pelos séculos. Amém.

Fonte

Filed under: Poesia

Canto de Natal

203muril

São Romano, o Cantor

A Virgem hoje dá luz ao Eterno
E a terra oferece uma gruta ao Inacessível.
Os anjos e os pastores te louvam
E os magos avançam com a estrela.
Porque Tu nasceste para nós,
Pequenino, Deus Eterno!


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Paradiso – Canto XXXIII

Abro uma exceção no blog, para Dante:

“Vergine Madre, figlia del tuo figlio,
umile e alta più che creatura,
termine fisso d’etterno consiglio,

tu se’ colei che l’umana natura
nobilitasti sì, che ’l suo fattore
non disdegnò di farsi sua fattura.

Nel ventre tuo si raccese l’amore,
per lo cui caldo ne l’etterna pace
così è germinato questo fiore.

Qui se’ a noi meridïana face
di caritate, e giuso, intra ’ mortali,
se’ di speranza fontana vivace.

Donna, se’ tanto grande e tanto vali,
che qual vuol grazia e a te non ricorre,
sua disïanza vuol volar sanz’ali.

La tua benignità non pur soccorre
a chi domanda, ma molte fïate
liberamente al dimandar precorre.

In te misericordia, in te pietate,
in te magnificenza, in te s’aduna
quantunque in creatura è di bontate.

Or questi, che da l’infima lacuna
de l’universo infin qui ha vedute
le vite spiritali ad una ad una,

supplica a te, per grazia, di virtute
tanto, che possa con li occhi levarsi
più alto verso l’ultima salute.

E io, che mai per mio veder non arsi
più ch’i’ fo per lo suo, tutti miei prieghi
ti porgo, e priego che non sieno scarsi,

perché tu ogne nube li disleghi
di sua mortalità co’ prieghi tuoi,
sì che ’l sommo piacer li si dispieghi.

Ancor ti priego, regina, che puoi
ciò che tu vuoli, che conservi sani,
dopo tanto veder, li affetti suoi.”

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Laços de Família

(via Antonio Fernando Borges)

Não fosse em tempo assim de calmaria,
não fosse nessa ausência, nesse vento
que não vem, se não fosse este momento,
este momento cheio de agonia,

não fosse aquela brisa, aquele lento
afago, ah, se não fosse por Maria,
se não fosse por ela, quem teria
paciência com tanto adiamento?

Se não fosse por ela, se não fosse
pelo que ela agüentou, pela alegria
que ela embalou perplexa, que ela trouxe

em si e deu à luz e um belo dia
devolveu ao Senhor… Se a espera é doce,
é por causa da calma de Maria.

Bruno Tolentino

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Poema sobre a Natureza Humana

Fonte

Quem sabe se viver é estar morto, e estar morto é viver?

Eurípedes

Ontem, abatido pela tristeza, sozinho e longe de todos, sentei-me à sombra de um bosque, meditando em meu coração. Gosto desse remédio nos sofrimentos, o de me entreter silenciosamente comigo mesmo. O murmúrio da brisa, junto ao chilrear dos pássaros e ao sussurro das ramagens, trazia prazer ao coração aflito. As cigarras, no alto das árvores, cantando sonoramente ao sol, acrescentavam um ruído que acabava de encher o bosque. Perto ainda, um córrego de água pura vinha banhar-me os pés e deslizava da mata como orvalho refrescante. Eu, porém, absorvido na dor, não cuidava de nada disso, pois o espírito em tais condições se recusa a qualquer prazer. Interiormente agitado, entregava-me a uma luta onde eram minhas palavras que se debatiam. Quem fui? Quem sou? Quem serei? Não sei responder claramente, como não o sabem tampouco os mais sábios que eu. Envolto por uma nuvem, ando errante sem nada possuir, mesmo em sonhos, de tudo aquilo que desejo. Sim, somos peregrinos na terra e sobre todos nós se erguem a nuvem azul da carne. Mais sábio do que eu é quem melhor sabe expulsar a mentira loquaz de seu coração.

Eu sou. Explique-se-me o que é isso. Uma parte de mim já se foi, sou outro neste instante, e outro serei ainda se continuo a existir. Nada é estável. Assemelho-me ao curso de um rio turbulento que sempre avança sem nada ter fixo. Dir-me-ás o que sou em tudo isso? Ensina-me ao menos o que sou para ti. Permaneço aqui um momento, mas cuida que eu não fuja de ti… Não atravessarás de novo o rio do mesmo modo como o atravessaste, não reverás o mortal que já viste uma vez.

Existi inicialmente na carne de meu pai, depois minha mãe me acolheu e provenho de ambos. Fui em seguida uma carne confusa, massa informe, antes que homem, sem palavras nem espírito, tendo na mãe meu túmulo.. Sim, nós estamos duas vezes no túmulo, pois nossa vida também se termina na corrupção. Esta vida que percorro, vejo que se despende anos que me trazem o funesto envelhecimento. E se, partindo da terra, sou acolhido numa vida sem fim, como se diz, vê se a vida não contém a morte, e se a morte não é para ti a vida, contrariamente ao que pensas.

Nada tenho sido. Por que sou sem cessar avassalado pelos males, como se não mudasse jamais? Pois só os males, entre os mortais, são imutáveis, inatos, inseparáveis e não envelhecem. Apenas saído do seio de minha mãe, verti a primeira lágrima; e haveria de encontrar tantas e tão grandes calamidades! Derramava lágrimas antes de tocar a vida! Ouvimos falar de uma região, como outrora Creta, onde não havia animais ferozes, e de outra isenta da neve. Mas nunca se ouviu de um mortal que deixasse esta vida sem que tristes penas o atingissem. A doença, a pobreza, o parto, a morte, o ódio, os maus, as feras do mar e da terra, as dores: eis a vida! Conheci muitos males sem alegria, mas não conheci jamais a alegria completamente isenta de sofrimento, desde o fatídico fruto que degustei e o inimigo invejoso que me marcou com o signo da amargura.

Carne, eis o que devo dizer-te, a ti, tão difícil de se curar, inimiga suave, a quem a luta jamais abate, fera atroz que cruelmente acaricias, fogo que refresca – ó coisa espantosa! Mais espantoso porém seria se acabasses por te tornares minha amiga!

E tu, ó minha alma, ouvirás por tua vez a linguagem que te convém. Quem és? donde vens? qual o teu ser? quem te estabeleceu como sustentáculo de um morto? Quem te ligou aos tristes grilhões da vida, sempre inclinada para as coisas da terra? Como foste misturada ao grosseiro, tu que és sopro? à carne, tu que és espírito? Ao pesado, tu que és leve? São qualidades que se opõem mutuamente e se combatem… Se vieste à vida, engendrada ao mesmo tempo que a carne, quanto então essa união tem sido perniciosa para mim! Sou imagem de Deus e me tornei filho da torpeza. Temo que o desejo tenha sido a causa do nascer de algo tão digno de honra. Um ser fugidio me gerou e sofreu a corrupção. Eis-me, então, homem, mas cessarei de sê-lo e me tornarei cinzas: são estas minhas últimas esperanças?

Ao contrário, se és celeste, quem és tu e donde vens? Aspiro sabê-lo, instruí-me! Se tens o sopro de Deus por origem e Deus mesmo por destino – como julgas – rejeita o vício e acreditarei em ti! Porque não convém que o puro seja maculado, mesmo levemente; as trevas não pertencem ao sol, o filho da luz não vem do espírito mau. Como és atormentada a tal ponto por Belial, tu que intimamente estás unida ao Espírito divino? Se com tal ajuda ainda te inclinas para a terra, então é grande a violência de tua maldade!

E se não vens de Deus, qual a tua natureza? Ah! temo ser presa de vão orgulho: Deus me plasmou, depois houve o Paraíso, o Éden, a glória, a esperança, o preceito, o dilúvio destruidor do mundo, a chuva de fogo, e a seguir a Lei, esse remédio escrito, e finalmente o Cristo, que uniu sua natureza à nossa para trazer socorro a meus sofrimentos através de seus divinos sofrimentos, para divinizar-me, graças a sua condição humana; e apesar de tudo isso mantenho um espírito indômito, sou como o javali furioso que se mata precipitando-se sobre o ferro!

Que bem se acha na vida? A luz de Deus? Mas as trevas invejosas e odiosas dela me afastam! Não me beneficio dela. Os maus não me dominam sob todos os aspectos? Por que, apesar de todos os meus sofrimentos, não lhes sou ao menos igual? Estou abatido até a terra, até ao cabo de minhas forças; o temor divino me fez vergar; dia e noite me abatem preocupações; o orgulho derrubou-me ao seduzir-me traiçoeiramente, calcou-me aos pés. Cita-me tudo o que há de terrível: o negro Tártaro, o Flégeton 2, os tormentos, os demônios que são os carrascos de nossa alma. Tudo isso os maus têm como fábulas, só considerando o que está diante de si e é bom. O temor do castigo não corrige sua maldade. Mas preferiria ver os maus não punidos, mesmo no futuro, antes que me afligir agora por castigos devidos à sua maldade! 3

Mas, por que então cantar assim as dores dos homens? A dor se estende sobre toda a nossa estirpe… Aliás, nem a terra é sem abalos, os ventos agitam o mar, as horas se sucedem em delírio, a noite põe fim ao dia, a tempestade obscurece o ar, o sol tira a beleza às estrelas, as nuvens tiram-nas ao sol, a lua se renova, o próprio céu não é senão parcialmente brilhante por seus astros. E tu, Lúcifer, tu estavas outrora entre os coros angélicos e, agora, invejoso, tombaste vergonhosamente dos céus!

Mas, ó Trindade, reino venerável, sê-me propícia! Nem vós escapastes à língua dos efêmeros insensatos! O Pai, primeiro, depois o Filho em sua majestade, e enfim o Espírito do grande Deus foram objetos de injúrias.

Aonde, porém, infeliz aflição, tu me arrastas? Cala-te! Acaso, tudo não é pequeno em relação a Deus? Cala-te diante do Verbo!

Não, não foi em vão que Deus me criou! (Eis que estou indo contra o que eu mesmo cantei: são as fraquezas de nosso espírito). Agora és trevas, um dia serás razão e compreenderás tudo, seja vendo a Deus, seja devorando-te pelo fogo.

Quando meu espírito me fez ouvir estes cantos, minha dor serenou E assim tarde deixei o bosque sombrio e voltei à vida, ora alegrando-me com um pensamento, ora consumindo o coração no sofrimento, o espírito sempre em luta!

1 Apresentamos em prosa a tradução desta famosa peça, redigida originalmente cm verso. a. P. GALLAY, o.c. Lycn, 1941.
2. Plageton : Rio do inferno, na literatura antiga
3. Outra interpretação: Meus sofrimentos são tais que, para me libertar deles, aceitaria ver impunidos os maus.

FONTE:
GOMES, C. Folch; Antologia dos Santos Padres.

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Ó Espiritual Festa!

Palavras dos Cristãos da Ásia Menor, século II:

Ó mística Exultação! Ó espiritual Festa! Ó Páscoa divina!
Do céu tu desces à terra e da terra, de novo, tu sobes ao céu!
Ó salvação de todas as coisas! Ó solenidade de todo o cosmo!
Ó alegria do universo, sua honra, festim de delícias!

Por ti, a morte foi destruída e a vida foi difundida sobre todos os seres.
Foram abertas as portas do céu! Por ti foram destruídos os infernos e suas correntes foram quebradas!

Os habitantes na mansão dos mortos ressuscitam e se unem aos coros celestes!
Ó Páscoa divina!
Por ti a grande sala nupcial tornou-se cheia: todos trazem a veste nupcial!
Ó Páscoa! Por ti não mais se apagam as lâmpadas das almas, mas todos recebem o fogo espiritual da graça,

Alimentado pelo Corpo, pelo Espírito e pelo óleo de Cristo!
A ti invocamos, ó Cristo, Deus soberano, rei eterno.
Estende as tuas mãos imensas sobre a tua santa Igreja e sobre o teu povo santo, eternamente teu:
Protege-o, guarda-o, combate por ele! Submete todos os inimigos, vencendo com a tua potência invisível também os adversários invisíveis como venceste as potências que nos eram hostis!

Ergue também hoje os teus troféus sobre nós e dá-nos a graça de entoar com Moisés o hino da vitória,
Porque tua é a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém

Filed under: Poesia

Atenção!

Se você acha que a Filosofia Cristã foi superada; que a Igreja é arcaica e precisa progredir; que o Cristianismo é irracional; que os Cristãos são incapazes de responder a críticas; que a Teologia moderna é superior à antiga, retrógrada; que a Patrística pertence a um contexto histórico incompatível com a modernidade; que a Igreja sempre controlou consciências;... Suma desse site. Vá ler o Código da Vinci, e faça bom proveito.

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