«Porque me puseste contrário a ti, e porque me tornei pesado a mim mesmo?» (Jó, 7,20)
Comentário de São Gregório Magno:
«Deus tornou o homem contrário a si mesmo quando o homem, pecando, abandonou Deus. Apanhado nas mentiras da serpente, tornou-se inimigo daquele cujos preceitos desprezou. O Criador, sempre justo, considerou o homem como seu opositor e reputou-o como inimigo por causa de seu orgulho. Mas essa oposição, obra do pecado, tornou-se para o homem um duro suplício, de modo que, por uma liberdade deslocada, o homem foi escravizado na corrupção, ele que, por uma feliz dependência, gozava livremente da felicidade. Abandonando a cidadela segura da humildade, chegou por seu orgulho ao jugo da enfermidade; querendo elevar-se, seu coração só conseguiu se escravizar e por não ter querido se submeter aos mandamentos divinos, ficou sujeito a todas as misérias presentes.
Isto se tornará mais evidente se considerarmos primeiramente as misérias do corpo e em seguida as da alma.
Mesmo sem se falar nas dores que o corpo sofre nem nas febres que o queimam, aquilo que se chama saúde está cercado de muitos males. O corpo se amolece pelo repouso e se esgota pelo trabalho; a abstinência o esgota por sua vez, então ele se reconforta pelo alimento a fim de subsistir; o alimento de novo o fatiga e ele tem necessidade do alívio da abstinência para retomar o vigor; o banho lhe é necessário para não ressecar, em seguida se enxuga com panos para não se reduzir em água; entretém-se com o trabalho para não elanguecer no repouso; depois repara suas forças no repouso para não sucumbir com o excesso de trabalho. O cansaço da véspera se repara com o sono; o torpor do sono se sacode com a vigília, pois um repouso muito longo o cansará mais. Cobre-se de roupas para não sentir frio; depois, sofrendo com o calor que procurou, entrega-se à frescura do vento.
Procurando evitar um mal, encontra outro: trazendo uma funesta ferida, o homem se faz, por assim dizer, doente daquilo que é um remédio para seu mal. Quando estamos livres das febres e isentos de dores, nossa saúde é, ela própria, uma doença de que é preciso cuidar sem cessar. Pois tanto mais alívios procuramos para as nossas necessidades da vida quanto mais remédios opomos à nossa moléstia. E mais, o próprio remédio se converte em doença quando, usando-o por muito tempo, ficamos doentes daquilo que procuramos para nos curar.
Isto foi necessário para punir nossa presunção; e foi necessário para abater nosso orgulho. Uma só vez a natureza se encheu de orgulho e por causa disso carregamos um corpo de lama que sempre desfalece.
Nossa alma, por seu lado, carrega também seus males. Banida das alegrias sólidas e interiores, ela é ora enganada por uma vã esperança, ora agitada pelo medo, ora abatida de tristeza, ora entregue a uma alegria falsa. Agarra-se com teimosia aos bens que passam e, sem cessar, é alquebrada pela dor de perde-los, porque é, a todo instante, transformada pelo curso rápido das mudanças de tais bens. Sujeita a essas coisas sempre inconstantes, torna-se inconstante também. Não é sem angustia que encontra o que procurava e, encontrando, começa a se aborrecer com o que procurou. Muitas vezes ama o que tinha desdenhado e desdenha o que havia amado.
Aprende com muita dificuldade as coisas da eternidade e esquece-as rapidamente, se não se esforça sem cessar. Procura por muito tempo para encontrar um pouquinho das coisas celeste; depois, recaindo logo em seus hábitos, não se mantem nem mesmo no pouco que tinha adquirido. Se deseja ser instruída, é-lhe ainda extremamente penoso vencer a vanglória da ciência.
Com muito custo a alma vence a tirania da carne; depois sofre no seu interior com as imagens do pecado, embora lhe tenha reprimido os atos exteriores.
Quando procura se elevar ao conhecimento de seu Criador, encontra-se, pouco depois, como que empurrada e envolvida pelas trevas que, infelizmente, ainda lhe são caras.
A alma gostaria de saber como, sendo incorpórea, governa seu corpo, mas não consegue fazê-lo efetivamente. Pergunta-se, com espanto, coisas sobre as quais não pode responder e persiste na ignorância quando melhor seria que procurasse saber. Vendo-se ao mesmo tempo grande e limitada ela não sabe mais o que deve pensar de si mesma; porque se não fosse grande não procuraria tão grandes verdades e se não fosse limitada saberia achar ao menos o que procura.
Jó tinha razão de dizer: Porque me puseste contrário a ti, tornei-me pesado a mim mesmo. Pois o homem, expulso do paraíso, padecendo os incômodos da carne e dúvidas difíceis em seu espírito, tornou-se um fardo pesado para si mesmo. Pressionado por mil males, esmagado por doenças, o homem imaginou que, depois de ter abandonado a Deus, acharia repouso em si mesmo, mas só encontrou um abismo de perturbações; assim, depois de procurar demais a si mesmo com desprezo de seu Criador, é forçado a fugir de si mesmo sem ter mais os meios para isso».
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