Etienne Gilson
Pela amplitude da sua obra e a profundidade do seu gênio, Orígenes supera de longe os pensadores que estudamos até aqui. Seus contemporâneos tiveram o justo sentimento da sua grandeza, e as pesquisas da história moderna multiplicaram para nós as razões de admirá-lo. Nascido por volta de 184, no Egito, muito provavelmente em Alexandria, de um pai convertido ao cristianismo, Orígenes instruiu-se primeiro com Clemente de Alexandria e talvez em seguida tenha estudado filosofia com Amónio Sacas, que também foi mestre de Plotino. Tendo aberto uma escola e ensinado, por sua vez, começou a escrever por volta de 218. Depois de uma viagem a Roma, por volta de 221, partiu para a Grécia em 230. No decorrer desta viagem é que Orígenes foi ordenado padre. Tendo-se retirado em seguida a Cesaréia, aí fundou uma escola e uma biblioteca. Numerosos discípulos acotovelavam-se à sua volta, retidos pelo brilho do seu ensino e a dedicação sem reservas de seu mestre. Detido e submetido à tortura em 250, quando da perseguição de Décio, parece ter morrido em Tiro, em 253, em conseqüência dos sofrimentos que padecera. A carreira desse grande teólogo não foi desprovida de obstáculos. De gênio especulativo ousado e mesmo temerário, fez um trabalho pioneiro em demasiados terrenos ainda mal explorados para que não o desculpemos de por vezes ter-se perdido. A violência apaixonada de suas convicções se assinala na decisão que tomou de mutilar-se, a fim de seguir ao pé da letra o preceito de viver como eunuco. Só nos resta uma pequena parte de sua imensa obra. Do que nos foi conservado, a história da filosofia deve reter em particular sua refutação de Celso (Contra Celsum) e, sobretudo, seu tratado Dos princípios (Péri Arkhôn ou De principas). Só possuímos a íntegra desta última obra na tradução latina de Rufino. Comparando-a com numerosíssimos fragmentos do texto grego que subsistiram, constatamos que essa tradução não é irrepreensível. Nos trechos perigosos, ela puxa o texto um pouco para o lado da ortodoxia, mas, graças aos cruzamentos que outros textos de Orígenes permitem, é possível e legítimo utilizá-la.
O tratado Dos princípios se dirige a duas classes de leitores: os que, tendo aceitado a fé, desejam além disso aprofundar o ensinamento das Escrituras e da tradição cristã, e os simples filósofos, os heréticos ou mesmo os inimigos declarados da fé. Os princípios que ele lhes quer ensinar são os da verdade cristã: Deus, o mundo, o homem e a Revelação. Orígenes é, portanto, um cristão que se dirige primeiramente a cristãos, mas deseja, se possível, persuadir também os infiéis. Se, porém, ele fala primeiro e principalmente aos fiéis, é porque, embora todos concordem em reconhecer a palavra de Cristo como única fonte da verdade salutar, nem todos sempre concordam quanto ao sentido que lhe convém atribuir. Para pôr fim a essas divergências, deve-se apelar para a tradição, mas também consultar os cristãos que, além da fé comum a todos, receberam do Espírito Santo os Dons da Ciência e da Sabedoria. Orígenes revela aqui, de maneira sensível, um aristocratismo espiritual já presente, não obstante o que se tenha dito, em Clemente de Alexandria, só que de forma mais discreta. Um texto do Contra Celsum (VI, 13) permite ver como, no pensamento de Orígenes, essa distinção se baseava no ensinamento de são Paulo: “A Sabedoria divina, que é distinta da fé, é o primeiro dos chamados carismas de Deus; depois dela vem o segundo, que os que possuem uma ciência exata dessas coisas chamam de conhecimento (gnôsis); e o terceiro é a fé, pois mesmo os mais simples devem ser salvos, se são tão piedosos quanto podem.” Foi por isso que Paulo disse: “a um é dada, mediante o Espírito, a palavra da sabedoria; e a outro, segundo o mesmo Espírito, a palavra do conhecimento; a outro, no mesmo Espírito, fé” (I Co 12, 8-9). Todos os cristãos crêem, pois, nas mesmas coisas, mas não da mesma maneira. O homem se compõe de um corpo, de uma alma e de um espírito. Do mesmo modo, a Igreja se compõe de simples fiéis, que se atêm à fé nua e crua na verdade do sentido histórico das Escrituras; de cristãos mais perfeitos, que, graças à interpretação alegórica dos textos, atingem a “gnose”, isto é, no sentido bíblico da palavra “conhecer”, um conhecimento que seja uma união (Jo 14, 4; 17); enfim, cristãos mais perfeitos ainda, que alcançam o “sentido espiritual” das Escrituras e, por uma contemplação superior (theôria), já discernem na própria Lei divina a sombra da beatitude vindoura.
Deus é uno, simples, inefável e perfeito. Sua natureza é imaterial, porque o que é perfeito é imutável e o imutável é imaterial por definição. É por isso, de resto, que não podemos nos representar o que ele é, pois sua natureza supera ao mesmo tempo a ordem da matéria e a ordem de espíritos como o nosso, que estão detidos na prisão de um corpo. O fato de que Deus seja Pai, Verbo e Espírito Santo não impede que seja uno, mas Orígenes permanece embaraçado no problema das relações entre as pessoas divinas. Certa subordinação do Verbo e do Espírito ao Pai ainda subsiste em seu pensamento. É difícil reduzir à unidade as numerosas explicações sucessivamente propostas por um exegeta que, em cada caso particular, se esforça em explicar um texto bíblico distinto (por exemplo, Pv 8, 22-31).
Do conjunto dessas explicações decorre, porém, de maneira bastante clara, por um lado, que Orígenes afirma sem reticências a coeternidade absoluta com o Pai de um Verbo não criado, por conseguinte Deus como Pai; por outro lado, que, tão firme ao definir de per si a relação do Verbo com o Pai, Orígenes tende a subordinar o Verbo ao Pai quando procura definir o papel do primeiro na criação. A dificuldade é inerente ao problema, pois trata-se de considerar o Verbo como um intermediário. Orígenes fala, então, do Verbo como de “um Deus”, primogênito da criação, que gerará ou¬tros verbos depois de si e, por conseguinte, outros deuses. Serão as naturezas razoáveis, cada uma das quais está para o Verbo assim como o Verbo está para Deus. Não se pode deixar de pensar aqui em Plotino, co-discípulo de Orígenes na escola de Amonio Sacas.
Deus criou o mundo do nada por seu Verbo, em que estão as formas vivas de todas as coisas. Sua bondade quis produzir o mundo segundo sua sabedoria, e seu poder produziu-o até na própria matéria. Por outro lado, é absurdo imaginar um Deus eternamente ocioso, que decidiria de repente criar. Como, de resto, conceber um todo-poderoso que não usasse seu poder? E como conciliar tal mudança com sua imutabilidade? Logo, o mundo foi criado desde toda a eternidade, isto é, ele é eternamente produzido a sê-lo pela onipotência de Deus. Eterno na duração, esse mundo é, porém, limitado no espaço, pois Deus faz tudo, como diz a Escritura, in pondere et numero, portanto com medidas e um número definidos. É verdade que o Gênesis atribui um começo ao mundo em que vivemos. É literalmente exato; mas nosso mundo não é nem o primeiro, nem o último. Houve outros antes dele; haverá outros ainda depois da sua destruição final, e assim por diante indefinidamente.
Criado por Deus com uma suprema sabedoria, este mundo em que vivemos é como uma manifestação do Verbo. Compreendido no Pai, o Verbo conhece tudo o que é o Pai, e é desse conhecimento que ele mesmo produziu livremente esses outros verbos de que já falamos. Essas criaturas de um Deus espírito e livre eram elas mesmas espíritos e livres. É à sua liberdade que o mundo deve o fato de ter uma história. Obras de uma pura bondade, que é simples, una e perfeitamente semelhante a si mesma, esses espíritos foram criados iguais entre si. Usando então seu livre-arbítrio, alguns deles apegaram-se a Deus com mais ou menos força, ao passo que outros se desviavam mais ou menos completamente dele. Os diversos graus dessa fidelidade ou dessa queda assinalam exatamente a hierarquia dos espíritos que povoam atualmente o universo; das hierarquias angélicas mais elevadas aos anjos já menos puros que regem os movimentos dos astros, depois aos homens, espíritos aprisionados nos corpos, cada ser ocupa o lugar que escolheu livremente. As almas humanas estão, pois, aprisionadas em seus corpos em conseqüência da sua deserção inicial, mas aqui, como nas doutrinas de Platão e de Plotino (provavelmente também de Amônio Sacas), elas podem esforçar-se para se libertar da sua prisão e recuperar sua condição primitiva. De fato, não são primitivamente almas, mas puros espíritos, que nada destinava a vir mais tarde animar corpos. Na palavra alma (psykhé), Orígenes discerne a raiz que significa “frio” (psykhron). Como se disse muito bem (G. Bardy), as almas não são, para ele, mais que “espíritos resfriados”. Sua história pessoal é a de seus esforços para reencontrar seu calor e sua luz primitivos. A crer-se em são Jerônimo (Epist. 124, 4), Orígenes teria até mesmo admitido que as almas humanas podem se degradar mais ainda e, como na metempsicose dos pitagóricos, passar de um corpo humano a corpos de animais, mas não encontramos em seus textos nenhum passo que nos permita atribuir-lhe essa doutrina. O problema da origem da alma permanece misterioso para ele. Como santo Agostinho, ele estima que o ensinamento da Igreja nos deixa livres para escolher entre as duas hipóteses: da sua transmissão pelos pais, ou da sua introdução do exterior. A imaterialidade da alma humana aparece claramente, devido ao fato de que ela é capaz de conhecimento intelectual, cujo objeto é, ele próprio, imaterial. Para consumar a libertação à qual deve tender, a alma deve se elevar primeiro, graças à dialética, do conhecimento das coisas sensíveis ao das verdades intelectuais e morais. Certos espíritos atêm-se a isso, que é apenas ver a luz do sol, não é ver essa luz mesma. Só podem vê-la aqueles de quem uma luz divina ilumina a alma e aquece-a com seus raios.
Por ter sido a causa inicial de sua queda, o livre-arbítrio do homem é o agente principal de sua reabilitação. E incontestável que o homem permanece um ser livre. Os seres inanimados, como as pedras, são movidos por outrem; os seres animados, ao contrário, possuem eles mesmos o princípio de seu crescimento, no caso das plantas e, no dos animais, o de seu movimento. Dentre os animais, alguns são movidos de dentro por suas sensações ou suas imagens; mas o homem é dotado, além disso, de uma razão, cujos princípios lhe permitem criticar suas imagens e suas sensações. Cada um de nós pode constatar que os juízos da razão são livres, não no sentido de que possamos indiferentemente afirmar ou negar tudo, mas ao menos no sentido de que sabemos ser nós mesmos os autores responsáveis de tudo. Sou eu mesmo que quero, que ajo e que julgo. Sem dúvida, muitas influências boas ou ruins podem agir sobre mim para influenciar meu querer, mas sou finalmente eu mesmo a causa da minha decisão.
Como se viu, essa liberdade foi a ocasião primeira do mal, mas era e continua sendo a condição necessária do bem. A possibilidade de não escolher Deus é correlata à de escolhê-lo. Vamos mais longe: essa aptidão a preferir o bem ou o mal é absolutamente requerida para que esse bem possa verdadeiramente se tornar nosso próprio bem. Aí se encontra ainda, para nós, a raiz de nossa reabilitação. Aprisionada no corpo em que seu erro precipitou-a, a alma não perdeu toda lembrança da sua existência anterior. Ela é, por natureza, um espírito feito à imagem e semelhança de Deus, capaz, por conseguinte, de conhecê-lo conhecendo a si mesma, e de conhecê-lo cada vez melhor à medida que recupera, pela ascese e pela purificação, a semelhança com Deus, que perdeu em parte. Cada homem é poderosamente auxiliado nessa tarefa pela graça de Cristo, cuja alma é a única que desceu num corpo humano sem nada ter perdido de sua similitude divina. Essa alma de Cristo permanece, pois, essencialmente, o Verbo, encarnado para nos salvar, e que entregou verdadeiramente sua alma em resgate para remir do Demônio os direitos que este possuía sobre nós em conseqüência do pecado. Desse sacrifício decorre a graça, socorro puramente gratuito e causa principal de nossa reabilitação, mas com a qual, para que essa reabilitação nos pertença, nosso livre-arbítrio deve cooperar.
O sacrifício de Cristo não é o ponto de partida apenas da salvação do homem, mas também dos anjos, e mesmo, em certo sentido, do universo inteiro. Se a doutrina de Orígenes se assemelha, por seu caráter geral, a uma cosmogonia gnóstica, difere radicalmente desta pelo otimismo cristão que a inspira. O mundo origeniano não é obra de um demiurgo inferior trabalhando sobre uma matéria ruim. Como dissemos, Deus criou tudo ele mesmo por pura bondade, inclusive a matéria. Logo, a matéria é boa, mesmo se é ruim para um espírito deixar-se encerrar nela. Aliás, o corpo do homem não é apenas a prisão de sua alma, é também, para ela, um meio de reabilitação, sobre o qual ela de certa forma se apoia, pela ascese, em seu próprio esforço de se libertar dele. Quando o mal houver atingido o limite que Deus lhe fixou, o mundo será destruído por um dilúvio de água ou de fogo. Voltando a ser puros espíritos, os justos se erguerão ao nível dos anjos e os maus decairão ao dos demônios. Todas as coisas serão então submetidas a Cristo e, por ele, a Deus, seu Pai, restabelecendo-se finalmente a ordem primitiva da criação.
Finalmente é, sem dúvida, dizer muito. Dos fragmentos de nosso mundo destruído, Deus fará outro, e depois deste outros mais, cuja história dependerá, para cada um deles, das livres decisões dos seres razoáveis que neles estarão contidos. Certos textos de Orígenes dão a pensar que os mesmos espíritos criados habitarão esses universos sucessivos e participarão de sua história, uns conservando seu nível hierárquico durante três ou quatro mundos, só vindo a perdê-lo em seguida, outros conservando-o sem fraquejar, outros ainda perdendo-o de imediato. Seria preciso, então, admitir que Cristo também recomeça, sem nunca acabar completamente, a obra da Redenção. Orígenes, porém, parece ter pensado que um lento progresso se consuma de um mundo a outro, e que o mal deve um dia desaparecer, eliminado pelo bem. Percebemos, assim, confusamente, um fim verdadeiramente último dos tempos, em que tudo será tão bem fixado na ordem, que Orígenes convida seu leitor a decidir ele mesmo, se é que se deve crer de fato que ainda restarão demônios e danados separados de Deus por toda a eternidade.
Essa história do mundo não é mais que uma parte da vasta doutrina teológica de Orígenes. Ela oferece para nós o interesse de representar de maneira bastante exata a versão cristã de uma concepção do universo cuja versão pagã pode ser lida nas Enéadas de Plotino. A influência da doutrina de Orígenes foi considerável. As teses audaciosas que ela continha foram objeto de reiterados ataques, como as de Método de Olimpo (falecido em 311), de Pedro de Alexandria (falecido em 312), de santo Epifânio (em seu Panarion, escrito por volta de 375) e, mais tarde ainda, de Teófilo de Alexandria, que reuniu um grande concílio para julgar sua doutrina, cuja condenação logrou. Mas não lhe faltaram defensores. Entre os latinos, são Jerônimo fez de Orígenes um elogio entusiasta, e os grandes capadócios, cuja atitude vamos definir, souberam retificar sua doutrina, como convinha fazer, sem lhe pouparem sua admiração.
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